terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Sobre canceres e afetos

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS



Semana passada, comecei a ver a segunda temporada do programa Sessão de terapia. O primeiro episódio mostra uma jovem com câncer que não quer contar à família sobre a sua doença.

Em 2006 , tive uma suspeita de câncer de mama. Fui submetida a exames bem dolorosos. Mas no final das contas , estava tudo certo. O nódulo era benigno. 

A personagem vivida pela atriz Bianca Comparato não quer preocupar a família. De certa forma a entendo. Nunca conseguiria esconder dos meus um assunto desta natureza. Mas me lembro da agitação entre os meus parentes. Lembro da minha agitação e do extremo cuidado e carinho com que fui tratada pelos médicos e enfermeiras.

Eles olhavam e examinavam o meu seio como se observassem uma obra de arte, um objeto quase sagrado. Temiam me machucar. Lamentavam ver uma mulher com menos de trinta anos vivendo um drama que não pertencia à minha idade. Ou que não deveria pertencer.

Durante a punção, a agulha fugiu da rota da anestesia e senti duas pontadas horríveis. Mas não chorei. Me agarrei à oração. Era muito devota de Nossa Senhora. E ainda sou...o médico enquanto me examinava , falava sobre cinema cult comigo num tom de voz que nunca pude esquecer. Não acreditei quando ele disse conhecer o filme "Instituto de Beleza Vênus" RS Amei este filme. Infelizmente não consigo achá-lo para vê-lo mais uma vez.

Lembro-me mais do afeto com que fui tratada do que do sofrimento.

Uma tia chegou a comentar com a minha mãe que seria muito cruel justamente eu ter um câncer.

Mas a vida não é justa...mas enfim, como disse, tudo deu certo no final. Mas hoje ao ver o drama da personagem, fiquei imaginando como eu reagiria se eu tivesse realmente um câncer.

Muitas vezes o tratamento pode ser mais doloroso do que a doença. Mas para mim, muito pior do que os enjoos provocados pela quimioterapia e tantos outros efeitos colaterais que devastam o paciente com câncer, é o profundo medo proporcionado pela esperança. 

Sim, esperança e medo são irmãs gêmeas ou faces da mesma moeda. Quando lutamos muito por algo, acreditamos, investimos a nossa energia em uma empreitada, sentimos muito medo de perder no final.

Talvez por isso algumas pessoas desistam antes de começar.  Talvez, o problema não seja a luta em si, mas o medo de ver tudo ruir. Então, deita-se no chão pois dele ninguém passa. 

Sou do tipo que luta, que briga, que morde, que se engalfinha com o destino mesmo quando intuitivamente já sei que a luta está perdida.  Mas confesso que existe uma profunda doçura calma e melancólica na desistência. Quando se perde a esperança, quando damos a batalha por perdida, quando largamos as armas e simplesmente olhamos para o opositor de peito aberto, sem subterfúgios, sem cartas debaixo da manga, sem olhares de esguelha, nada mais pode realmente nos tocar ou ferir.

Sim, entendo a personagem. Não concordo com ela, mas a entendo. Talvez concordar com as pessoas não seja assim tão importante, contanto que a compreendamos.







Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

3 comentários:

  1. Sílvia, fui voluntária por 2 anos do NACC ( Núcleo de Apoio à Criança com Câncer). E pude conhecer de perto a luta de alguns pequenos e de seus familiares. Muitas lutas vencidas e outras perdidas. E realmente, o medo e esperança caminham lado à lado. Mesmo que todos tenhamos a esperança de que vai dar tudo certo temos que estar preparados para o pior. Não é fácil para o paciente e nem para os familiares. Já ouvi relatos de famílias que se desfizeram por causa da descoberta da doença. E cada pessoa reage de forma diferente. Mas, acredito sempre na fé. Ela é a única força que faz a gente encarar o medo de peito aberto. E nós motiva a lutar.

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  2. Vc fez trabalho voluntário por 2 anos? Que show! Já fui voluntária, mas na área educacional. Trabalhar com pacientes com câncer deve ser uma experiência muito forte.

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  3. Sim, realmente é uma experiência muito forte e emocionante. Aprendi muito com eles nesses 2 anos. Perto deles os meu problemas não existiam. Pq, eles me deram lições de vida que vou lembrar pra sempre. O NACC recebe de bebês até adolescentes. A maioria são crianças do interior de Pernambuco e de outros estados. Eles vem para o Recife fazer tratamento e são encaminhados pelo serviço social. E a instituição fica oferecendo suporte aos serviços de oncologia pediátrica durante o período de tratamento. É lindo o trabalho que é feito e fico feliz por ter participado um pouco. Mas, confesso que tem ser muito forte emocionalmente. Devido ao envolvimento que temos com cada um que conhecemos. E foram muitas histórias, amizades, carinhos, abraços e sorrisos que recebi deles. E situações que me fizeram chorar sozinha dentro de um elevador. E disso nunca vou me esquecer. Acredito que as pessoas seriam bem melhores se participassem de projetos voluntários. Aprenderiam dar mais valor a vida e as coisas simples. E se um dia você visitar o Recife eu ficaria super feliz em te levar pra conhecer o NACC.

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