domingo, 7 de fevereiro de 2016

Bom mesmo é complicar!

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Hoje, lendo uma pilha de jornais largados sobre a minha caótica escrivaninha, lembrei-me do primeiro artigo que li escrito pela atriz Denise Fraga. Foi no tempo em que eu vivia no interior. Mais especificamente um dia após pedir demissão de um emprego medonho, em estado levemente febril e a alma em chamas de alegria.

Meu rosto estava levemente quente e suado enquanto pronunciava calmamente o meu pedido de demissão diante dos olhos estupefatos da minha chefe. Eu deveria estar feliz por estar empregada. Não, mas eu não estava. E saí de lá como quem acabou de cumprir uma pena. Mas isso foi há muito tempo...voltemos ao artigo.

Sentada na pequena sala do apartamento alugado, ouvi o artigo de Denise Fraga da boca da minha mãe. Minha mãe é ótima para ler. Ela faz as pausas dramáticas e imprime o ritmo perfeito para dar mais emoção à leitura. Sou caótica demais para ler bem. Me saio melhor no improviso, quando sigo as regras criadas por mim.

Denise Fraga falava sobre o prazer das coisas complicadas. Falava sobre o cheiro da comida caseira , da alegria de uma mesa bem posta com toalha de pano. Sim, a vida moderna nos condenou a lasanhas congeladas esquentadas às pressas no micro-ondas. A vida moderna nos condenou a sucos de caixinha , muito refrigerante , tudo empacotado, cada um comendo num horário, bolo só de padaria.

Aprecio o cheiro de bolo assando, café sendo coado, temperos refogados...gosto de cheiro de comida caseira , quente , feita na hora. Aprecio pôr bem uma mesa. Joguinhos americanos floridos , alegres,  uma lanterninha colorida sobre a mesa. Sempre me lembro de uma mimosa lanterninha lilás que comprei nos meus tempos de noivado e que punha para enfeitar a mesa entre os jogos americanos cheios de flores vermelhas.

A mesa posta para as refeições, o cheiro de comida fazem parte das lembranças mais felizes do tempo em que era noiva. Pois nada era feito à moda express. Ok.Ok.Ok. Eu não preparava a maionese em casa e a cenoura já vinha ralada do supermercado. Ok.Ok.Ok. Eu não era assim tão prendada, mas a comida era sempre farta e caseira . Até os sanduichinhos para saborear na frente da TV  eram preparados com esmero. Pernil de panela com salada de alface envolta em maionese.  E sempre tinha uma vela acesa... e sempre tinha aquele ar de coisa feita longamente.

Lembro dos parentes do meu avô paterno preparando pamonhas durante o dia inteiro. Naquele dia só se comia pamonha, só se falava de pamonha , só arrotava-se e peidava-se pamonha. Mas lá no fundo, a pamonha era um pretexto para o complicado, para o ritual, para o ficar junto, da mesma forma que os sanduichinhos de pernil  no lugar de um simples pão com patê industrializado era um jeito de dizer "Eu te amo, meu querido, por isso complico as coisas".  E não bastava vigiar o pernil durante duas horas no fogo. Era preciso regá-lo com calda de abacaxi , depois de ter sido marinado com vinho branco. ( Para quem não sabe , regar sistematicamente o pernil com calda de abacaxi, além de conferir um gosto muito bom, amacia a carne).


Sim, não temos mais tempo para jogar conversa fora , coar um cafezinho no meio da tarde, ficar duas horas ao pé do fogão para preparar uma carne ou um molho bem apurado. Hoje é só despejar da caixinha para a panela e logo em seguida para o prato.

Pequenos rituais , pequenas delicadezas , pequenos aconchegos estão se perdendo ...estão se esvaindo com o tempo, com o frenesi de uma vida tão cheia de afazeres e simultaneamente tão vazia.
Sim, Denise Fraga. As coisas complicadas são as mais felizes.




Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

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