terça-feira, 27 de setembro de 2016

Finitude

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

 
Busco por um sentido na própria vida. Busco por um sentido no fundo do copo de vinho abandonado na mesa de jantar. No fundo da xícara de café largada sobre o criado-mudo, perto do prato com restos de ovos mexidos.
 
 
Busco por um sentido naqueles minutos a mais que podemos dormir depois de ter esvaziado a xícara de café. Busco por um sentido no cheiro do próprio café. Aquele odor quente e aconchegante que abraça a casa, que acolhe em seus braços a cortina rendada da cozinha enquanto corto fartas fatias de bolo.
 
 
Busco por um sentido na calda de chocolate que derrete na panelinha que mais amo, na maciez do bolo caseiro que se desmancha na boca, no dia cinzento que entra pela janela prometendo um fim de tarde preguiçoso.
 
 
Busco por um sentido no teu sorriso, no meu sorriso, na risada compartilhada, no banho quente de banheira , no torpor que vem depois. Na manteiga derretendo na espiga de milho. No filme de arte que assistimos juntos entre suspiros e pontadas na alma.
 
 
Busco por um sentido na música clássica que me aninha enquanto quase durmo durante um banho quente, depois do amor feroz. Busco por um sentido nos pensamentos poéticos que trocamos diante das sobras do jantar.
 
 
Busco por um sentido no livro de poesias jogado no sofá. Na lembrança de uma aula instigante. Na memória que sempre nos fazer reviver o melhor e o pior.
 
 
Busco por um sentido nas dobras da tua camisa abandonada sobre a cadeira, no teu jeito de colocar os óculos, de despir a roupa, a alma.
 
 
Busco por um sentido na complexidade das coisas finitas e simples, cheias de odor e calor. Coisas belas que se percebem como condenadas ao fim.






Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 








terça-feira, 13 de setembro de 2016

Veneno

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Caminha pelo mundo com este ar de andarilho curioso. Com este ar de quem não tem para onde ir e eu sou a tua única possibilidade. O teu lugar morno em frente à uma lareira irreverente num mundo de mesmices.

Caminha em minha direção como se minhas mãos e meu sorriso fossem os únicos que existissem, que habitassem uma terra desolada e assolada pelo desamor e pela ignorância.

Lê o verso instigante de uma poesia em meus olhos e continua a caminhar segurando em minha mão, me fazendo de tua muleta e também de tua espada. E eu apenas te olho...não nos olhos...entorto o olhar como entorto a boca para sorrir. 

Há sempre algo de muito pouco confiável na expressão de uma mulher que se sente amada. E outro quê de insano nos olhos da que ama.

Sou esta mistura de desespero e volúpia, submissão e arrogância, que chega todas as noites completamente nua na porta do seu quarto interior. 

Deito-me ao teu lado antes mesmo de convidar-me. Conheço o meu lado na cama . Ela foi feita para mim. Está completamente condicionada ao meu corpo , cheio de certezas e interrogações. 

Mergulha em meus abismos por falta de opção... você sorri e eu fecho os olhos. Não pertenço mais a mim, com uma gota de veneno maledicente escorrendo por meus lábios. 







Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 







sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Gosto de traquinagem

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Sim, eu sinto um gosto de traquinagem saltando do céu da boca para a boca do estômago quando olha para mim com seu olhar zombeteiro.
 
Sim, eu sinto uma corrente de ar quente percorrendo a minha pele e fazendo-a tremer como a de um bebê desnudo numa noite fria quando abraça o meu mundo.
 
Sim, eu sinto as borbulhas do champanhe provocando coceirinha no nariz quando ri de uma bobagem qualquer ou quando faz suas profecias entre uma garfada e outra de estrogonofe.
 
Sim, eu sinto um desejo louco de sair voando para fora de mim mesma quando me pega desprevenida em um de meus muitos pensamentos insanos.
 
Sim, eu sinto um desejo louco de voar para longe para depois regressar ao mais íntimo e ao mais verdadeiro e ao mais obsceno de mim mesma.
 
Me olho por meio dos teus olhos e me vejo como obra inacabada , sem retoques. Quadro sem moldura , escultura de argila fresca.
 
Me olho por meios do teu riso e me vejo como melodia indecisa...não sei exatamente como acabar. Não sei exatamente como voltar.
 
Sim, eu sinto um gosto de traquinagem tecendo fios dentro de mim e alinhavando as minhas emoções perplexas e também as indiferentes num bordado caótico. Puxo um dos fios por puro vandalismo. Puxo um dos fios pois não sei ver coisas inteiras.  Sou um mosaico de mim mesma. Arte indecifrável. Poesia maldita. Música triste ouvida num dia de chuva.
 
Sim, puxo um dos fios pois temo finais. Não me fecho dentro de mim mesma...saio voando e voando...espero que me alcance, que me apanhe com uma das mãos , que sopre em meus ouvidos qualquer coisa que me faça ficar...por um instante a mais.
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 







 
 
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Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 


domingo, 4 de setembro de 2016

Ridículo

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Existe um quê de ridículo na felicidade. E outro maior ainda na infelicidade. Talvez, o único estado de espírito não patético seja a indiferença, seja aquele tipo de bem-estar desprovido de calor ou aquela tristeza que já não nos machuca mais , por fazer parte de nós, por ter se integrado à nossa carne. 

Aquele tipo de tristeza que se pudesse ser dissolvida nos faria sofrer mais com a sua ausência do que com a sua presença. 

Aquele tipo de tristeza que é quase feliz pois nos aconchega numa zona de conforto.  Não, não podemos cair mais ...não, não podemos descer mais...ilusão. 

Nunca descemos tudo o que temos potencial para descer e mesmo depois de ter destilado os piores e mais letais venenos , ainda resta um pouco de fel no canto da boca , debaixo da língua , esperando o momento oportuno ou inoportuno para ser cuspido na cara de alguém. 

Ou para ser simplesmente engolido por nós mesmos...quem nunca já se envenenou com o seu próprio ódio? Quem nunca utilizou de suas próprias palavras para tecer o mais afiado dos punhais e cravá-lo o mais profundamente no centro da sua alma , com um sorriso de canto de boca...escárnio...gosto de vinho velho...cheiro de lembranças que fazem uma dança grotesca.

Acusam os felizes de iludidos. Ingênuos. Parvos. Os infelizes também o são. Os felizes comem bolo de chocolate depois do almoço de domingo. Os infelizes se lambuzam com suas próprias desgraças.

Ambos não entendem um preceito básico: a vida é tédio, falso movimento, nada fica , nada importa, nada dura. Sim, é dura...ambos não entendem que realmente nada merece as nossas lágrimas ou os nossos risos. 






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Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Tragédia com cheiro de café requentado

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Olho para o copo de café vazio ao meu lado. Sinto o seu cheiro adocicado. Olho para a minha mesa de trabalho: papeis espalhados, o teclado do computador espancado por mim, tarefas chatas por fazer. 

A rotina tem gosto de café requentado. Café que custa a descer , mas que a gente bebe mesmo assim por falta de coisa melhor. O dia cinza que entra pela janela me traz alguma alegria. E sinto vontade de tomar café quente , passado na hora , com cheiro de felicidade e gosto de promessas que talvez nunca venham a se concretizar. 

Promessas...me cansei delas. Estou farta de tudo que está por vir. Prefiro o café depositado por horas numa garrafa térmica , servido num copo de plástico. É ruim, mas é real. Posso bebê-lo, aspirá-lo, senti-lo descendo por minha garganta que já se fechou tantas e tantas vezes diante da tragédia de existir. 

Até o dia cinza me proporciona alguma desconfiança. Há qualquer momento, o sol pode sair e mais uma vez eu sentir na boca e na alma aquele gostinho amargo de engodo, de fraude , de promessa não cumprida. 

Meu coração é terra desconhecida. Às vezes , fértil. Muitas vezes , árida. Caminho por ele como uma estrangeira sem um tostão no bolso. Olho com estranhamento. A alma seca de sede, um calor perturbador na boca, que tenta falar , mas não sabe exatamente o que dizer. Balbucio.

E na poeira do caminho , produzida por meus próprios pés, vou rascunhando versos da minha vida , versos que talvez sirvam para aqueles que como eu se sentem meio estrangeiros, meio perdidos num mundo que não faz muito sentido. 






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Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.