segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Paixões são realmente crueis

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Paixões são realmente cruéis. Hoje, ao voltar ansiosa para casa para assistir ao filme Scarface, me deparo com uma realidade profundamente triste:  estou sem internet. Quer dizer, não consigo acessar a internet do meu computador...mistério...


Sim, paixões são cruéis. Basta declararmos o nosso infinito desejo de vivermos para o ser amado que a coisa cai por terra. Não devia ter escrito ontem uma declaração rasgada de amor para o Netflix. Arruinei o meu romance...snif snif...

Justamente hoje, uma tarde cinzenta e poética, perfeita para se fazer tudo o que eu mais gosto. Encaro cada dia cinza de chuva mansa um presente do acaso. E quase sorrio ao andar na rua sem transpirar.

Ao olhar pela janela e ver as folhas das árvores balançando ao sabor do vento, sinto que a natureza faz uma profunda coreografia com a minha alma em chamas. E nos deitamos juntas sobre um colchão macio, sorrindo e sem pressa e sem medo do futuro.

Quase posso sentir o cheiro do café fresco, seu primeiro gole, a língua levemente queimada...quase posso sentir o cheiro do bolo saindo do forno...bolo de chocolate com calda espessa.  Quase posso sentir a mim mesma em sua versão melhor acabada e mais autêntica.
 
 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

domingo, 29 de novembro de 2015

Uma nova paixão

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Sim, estou loucamente apaixonada. Apaixonada  pelo Netflix. Quase subindo pelas paredes e jurando amor eterno, embora saiba que dentro de algumas semanas ou meses, dormirei de bunda para o meu PC, bocejando entediada e tentando descobrir o que vi de tão maravilhoso no Netflix.

Mas por enquanto quero viver esta paixão ardente , que nada me cobra, pelo menos não no primeiro mês de uso. Quero dormir muitas noites com o PC em meu colo conectado em algum filme  papo cabeça  ou em um romance anticonvencional.

Quero rever os clássicos e assistir muitos filmes de terror bizarros com as luzes do quarto apagadas, mergulhando batatinhas fritas num copinho com Ketchup. E no sabor da batata empapada de Ketchup, quero sentir mais uma vez o gostinho da minha adolescência que insiste em permanecer em mim.

Quero saltar ansiosa do metrô , subir alucinada as escadas rolantes, louca para chegar em casa e assistir a mais um filme debaixo de um cobertor, com a janela fechada e o ventilador ligado, fingindo que é inverno, fingindo que é fim de tarde, fingindo que as paixões são eternas. Fingindo que posso congelar o tempo e as emoções dentro de mim.

Eu que já sonhei com romances homéricos, hoje me sinto feliz saboreando uma porção de frango apimentado no restaurante coreano perto do meu trabalho ou tomando uma boa taça de vinho antes do almoço.

Mastigo as sobrecoxas apimentadas e banhadas no mel com os olhos semicerrados, sentindo um prazer mais do que erótico. Amor sem culpa. Amor sem promessas. É só devorar o petisco de olhos fechados, pagar a conta e voltar feliz para casa. Satisfeita.

Voltar para casa e para o meu Netflix: paixão brutal. Sinto que ele me perguntará sobre meu almoço coreano, mas basta eu aconchegar o PC confortavelmente em meu colo quente que ele se esquece de dar um ataque de ciúmes. E voltamos a ser apenas eu e ele.

 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Um brinde ao caos!

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 Mais um post lucidamente insano do Facebook me inspirou a escrever este meu pequeno artigo ou "testículo".

Dizem que a gente só encontra selfies e bons dias insossos no Face. Detesto encher o seu saco ( Mentira! Adoro) mas acho que a sua página deve estar meio pobrinha em termos de contatos.

Ok.Ok.Ok. Também vejo um monte de bons dias cercados por flores coloridas, borboletinhas brilhantes. As correntes também são abundantes. Os disparates políticos idem. Enfim, não falta mesmice em meu Face. Mas no meio do circo de horrores piegas, encontro posts que valem a pena. Normalmente , eles vem sempre das mesmas pessoas...como se diz...lei de Pareto.

O post que me inspirou hoje diz respeito às pessoas meio desajustadas. Adorooooo!  Não há nada que me deixe mais perturbada do que alguém totalmente centrado.

A vida é caos, bagunça, exige improviso, vento no cabelo, risadas sem noção no metrô, piadinhas escatológicas fora de hora. A vida exige que a gente ruborize os outros. Exige que a gente se ruborize sozinho com pensamentos idiotas.

A vida é improvisação, arte contemporânea, subjetividade na veia. Não dá para carregar o script embaixo do braço o tempo todo.

A vida é café quente derrubado na blusa branquinha. É preciso trocar-se rapidamente, catar a primeira roupa que apalpamos no armário. É preciso inventar novas deixas quando não nos falam o que a gente espera.

A vida é cartão de crédito com limite estourado. Às vezes a gente termina a noite lavando os pratos.


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Um pouco de inteligência, please!

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Sim, caro leitor. Preciso de frases, posts, pensamentos inteligentes como um esportista precisa de água depois de três horas se exercitando. 

A alma fica seca se não esbarrar em algo que faça ela vibrar. Pior do que encarar um monte de posts com bons dias e borboletas brilhantes sugerindo uma vida feliz, é se deparar com posts empreendedores. Eca! Sinto o fundo do meu estômago aumentar e quase me atiro num abismo...de tédio. 

Como conseguir o sucesso, quais erros evitar na hora da conquista...blá blá blá...um monte de bosta em estado literário para ganhar dinheiro em cima da ilusão alheia.

Cansei dos lugares comuns, das frases prontas, principalmente das proferidas por mim. Cansei de dizer e ouvir que há males que vem para bem, que Deus escreve certo por linhas tortas, que aprendemos com nossos erros. 

Tô cheia de um aprendizado que não leva a nada. Tô cheia, principalmente, do ar de superioridade daqueles que acreditam que aprendemos alguma coisa valiosa com a dor e que cada merda que acontece em nossa vida tem um porquê.  


Não me importo que pensem desta forma. Pouco me importa como as pessoas pensam ou deixam de pensar.  Tô farta de tentarem vender esta caca toda para mim em papel celofane cor-de-rosa. 

Não, não me sinto parte de um plano maior. Talvez nunca tenha sentido, mas só agora consigo admitir para mim mesma...não sei...não creio que Deus seja um escritor que escreva a nossa história nos mínimos detalhes.

Acredito mais que ele seja um coreografo do improviso e que nós como artistas performáticos nos movemos no caos, reinventando passos velhos,  nos deslumbrando com gritos e gestos desconexos, dançando uma dança bizarra que imaginamos ser só nossa, mergulhados em séculos de mesmices e emoções esgarçadas. 

Não importa para qual lado do salão nos desloquemos.  Tropeçaremos no nosso quinhão de veneno e bálsamo. Como diria Oscar Wilde, a vida tem duas tragédias básicas: conseguir o que se deseja e não conseguir o que se deseja.

Meu Deus...este pensamento é libertador! Melhor que ovo frito com gema mole dentro de um pãozinho francês logo pela manhã. 





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Torpor

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Muitas vezes, são os menores gestos, que nos trazem à tona. São pequenos gestos que reconstroem fases inteiras de nossa vida. Uma simples tiara me levou aos meus doze anos de novo e subitamente me deu vontade de ver TV comendo um pacote de Cebolitos.

Entrei animada na lojinha de guloseimas para comprar suprimentos. Animada talvez não seja o termo mais adequado pois estou com sinusite há mais ou menos uma semana e minha voz sai da boca cheia de preguiça. Meus olhos quase fecham quando desejo sorrir ou mostrar interesse. Não bocejo por puro tédio.

O termo mais correto seria saudosa. Sim, a tiara me levou à minha pré-adolescência , que despertou em mim o desejo de comer porcaria, que aumentou mais ainda a minha pré- disposição para ver TV a tarde inteira. 

Dias cinzentos me proporcionam fantasias estranhas. Imagino que não poderei sair de casa por muito tempo e em vez de comprar apenas um pacote de salgadinho, compro vários. Preciso me prevenir para o longo "inverno".

No inverno, queremos chegar, nos acolher, recolher as emoções e deixá-las dormindo no quentinho de nosso coração. Minhas lembranças acendem um fogo brando.   Sinto-me profundamente em paz. O frio está lá fora. Na soleira da minha alma. Do lado de dentro, estou eu sozinha a vagar suavemente pelos labirintos da minha meninice. 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

domingo, 22 de novembro de 2015

O corpo nu

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Em poucos dias, meu primeiro romance estará disponível no formato ebook. Apesar de já ter sete livros individuais  publicados e trabalhos lançados em mais sete obras, confesso que ter o primeiro romance publicado mexe comigo. 

Tudo bem. Entre 2001 e 2002 dois romances meus ficaram disponíveis em uma editora online. Mas não é a mesma coisa. Eles ficaram hospedados num site pouco conhecido. As pessoas podiam baixá-lo gratuitamente. Não, não é a mesma coisa.

O corpo nu, meu primeiro romance vem sido escrito no decorrer da minha vida. É um sonho quase tão antigo quanto eu mesma.

Decidi que queria ser escritora aos 11 anos de idade e quando uma pré-adolescente resolve ser escritora , não se imagina escrevendo livros didáticos ou sobre cinema espanhol. Eu queria mesmo era escrever um romance. 

Passava os finais de semana fechada em meu quarto, escrevendo compulsivamente em meus cadernos, com meus garranchos.  Achava que aos 11 anos, em poucos dias escreveria um romance digno de ser publicado. 

Não sabia que demoraria tanto para produzir um romance que realmente dissesse as minhas verdades, mesmo que parcialmente. 

No meu íntimo, adoraria ter dado um final niilista à desventurada Beatriz. Não por maldade. Pelo contrário. Queria um final niilista pois me parece mais fiel à realidade, mais maduro literariamente falando, mais possível dentro do meu atual conjunto de (des)crenças.

Todo final feliz é um campo minado para mim. Não sei descrever a felicidade amorosa pois não a conheço. E diante toda frase que escrevo sobre um amor bem-sucedido, sinto vontade de consultar quem é feliz no amor ( se é que existe mesmo)  para saber se a minha construção parece verossímil. "É assim mesmo?" "Descrevi bem a realidade?" Detesto escrever sobre aquilo que não entendo. É um misto de ingenuidade arrogante com falta de profissionalismo. 

Mas como Jane Austen, resolvi fornecer à minha heroína patética a generosidade que não recebi da vida. Tive pena de Beatriz. Talvez, por Beatriz ainda apresentar uma gota da pureza que me faz pensar em mim mesma há pouco tempo. Ou eu salvava Beatriz agora ou estaria tudo perdido para ela. 

Sim, Beatriz estará muito bem quando chegar a palavra FIM. Depois, não posso garantir mais nada pois ela não estará mais sob a minha custódia. 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Eu crucificaria o verão

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O dia amanheceu fresco e nublado e sinto meu humor mais ameno. Achava curioso e bizarro as pessoas falarem que os invernos longos e rigorosos na Europa arrastavam as pessoas para um estado de espírito modorrento e melancólico, fazendo muitos, inclusive, se atirarem no vão do trem ou estourar os miolos.

Hoje acredito fielmente nesta teoria como a mais dogmática das verdades. Odeio o calor. Odeio a ponto de odiar a vida quando os marcadores ultrapassam os trinta graus.

Ontem, deitada na minha cama, depois do almoço, notebook sobre a barriga, assistindo a um filme de terror, não senti nada, além de um profundo tédio. A veneziana fechada do quarto para dar um clima de nada adiantou.

A luz invadia o quarto e todo aquele ritual de aconchego que existe ao se ver um filme de terror num dia frio ( cobertor fofinho e felpudo, ambiente escurinho, uma coisinha gordurosa para comer) foi passear em PQP sem data prevista para voltar.

Fico sem rumo no calor exagerado. Não consigo pensar. Qualquer coisa me irrita. Se fosse obrigada a viver sob um calor constante de 40 graus não teria me tornado uma escritora, uma professora , uma pesquisadora. Teria me tornado qualquer outra coisa que não exigisse mais do que dois neurônios debilitados.

O calor é pegajoso, não combina com vinho e  parmesão. O calor é letárgico, não combina com fondue e romance. Romance nos dois sentidos da palavra. Romance gênero literário e romance romance...u lá lá...

O calor é modorrento, não combina com chocolate quente e Jane Austen nem com as irmãs Brontë. O calor é inóspito, não combina com abraço apertado e um bom papo filosófico depois do amor.

O calor não é romântico nem poético.  Muito menos intelectual. Não se lê Sartre ao redor de uma mesinha de café num dia extremamente abafado. Não se acena com o coração aos pedaços através da janela do metrô, deixando o seu amor em outra estação aos 35 graus. No calor queremos apenas ficar embaixo de qualquer foco de ar condicionado.  Calor é bom para deixar assentos de metro molhados com o suor de nossas bundas, como diria Bernarda Alba e encher a lavadora de roupas malcheirosas, cheias de nódoas de gordura.

Ok.Ok.Ok. Estou sendo grosseira e autoritária. Mas este é o meu cantinho privado e íntimo e ando livremente por ele sem roupas íntimas nem papas na língua. Aqui é o meu lugar confortável no mundo: pequeno, mas meu. Aqui não preciso entender nada ou fingir que entendo para ser gentil e civilizada.  Aqui, eu sou apenas a garota desbocada.


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Sobre desencontros

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Como disse Chiquinha Gonzaga  no velório do maestro Carlos Gomes, com quem teve um apaixonado romance, "o amor é um sentimento que a vida sempre me nega".

 
Acho que a vida nega o amor a todos, mas apenas uns poucos sabem disso ou assumem que sabem.
 
Como diria meu querido orientador de mestrado e doutorado, de que adianta ter alguém para transar ( ele usou outro termo também iniciado com a letra t) se este alguém não nos interessa? E me parece que é assim que a maioria vive. João ama Maria que ama Pedro, que por sua vez ama a si mesmo e manda beijinhos através de um enorme espelho de vaidade.
 
E Maria cansada de ser só acaba por se render ao amor de João, mas amor unilateral é como tentar matar a sede com água morna. Não sacia. É um falso consolo. Mas se João for bondoso o bastante e Maria dominar a arte de auto enganar-se , poderão por uns tempos acreditar que são felizes com aquele vazio na alma.
 
Se Maria for poeta, louca ou qualquer outra coisa do gênero, sairá sozinha pelo mundo, sem se importar com o vento, com a chuva, com tudo que aquilo que não há por vir.
 
Sim, querida Chiquinha. Tão melódica e buliçosa. A vida não vai muito com a cara de gente lúcida. Enxergar-se através das próprias entranhas é um dom nefasto. Abençoados os cegos. Abençoadas aquelas que podem fingir esquecer Pedro nos braços de João, enquanto Pedro continua amando-se através do espelho.
 


 
 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

O pior dos abismos

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Ouvi dizer certa vez que se a gente olhar para o abismo, o abismo olha para gente.  Sempre me senti irremediavelmente atraída por todos os precipícios por onde passei. Às vezes, penso que o meu coração é o maior deles. 

Faço parte daquela raça de gente estranha  que não recua diante dos destroços de pessoas destruídas. Me enfronho no caos e me deixo arrastar pelas paixões em uma batalha desigual em que sairei aniquilada.

Por alguns poucos anos , achei que a vida me trouxera juízo, bom senso. Meus ataques de "loucura" estavam se distanciando. O que se distanciava era eu mesma. 

Não, não criei juízo. Não criei couraças. A pele da alma anda cada vez mais fina e rosada, prestes a se romper. Não me importo. Cansei de lutar contra mim mesma. Contra tudo aquilo que sinto e desejo. 

Abandono-me numa letargia poética, em que tanto faz para onde a água corre. De qualquer forma o jogo está perdido. De qualquer forma terei os fieis braços da solidão para me abraçar e se aconchegar junto a meu corpo no raiar de cada noite. Para uma poeta isso deve bastar. E se não bastar, eu que faça o que tenho feito de melhor: me danar. 




Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Um ano para enterrar cadáveres

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Em abril deste ano foi enterrada minha última possibilidade de viver como uma personagem. Precisei enterrar muitos cadáveres e pular os escombros em que se reverteu minha vida para encontrar a mim mesma: completamente nua, usando apenas um batom vermelho e um sorriso sarcástico.

Se a vida tivesse seguido o curso esperado, seria eu hoje uma mulher me preparando para o casamento e à minha maneira , ou melhor dizendo, à maneira da personagem que vivi durante anos, poderia ter sentido uma felicidade mais ou menos, mais para menos do que para mais. Uma felicidade frígida, que contrai os lábios para segurar o choro. Mas que lá no fundo está bem porque fez o que deveria ter feito.

Eu não enterrei apenas um amor. Eu enterrei todo um ideal de vida. Eu enterrei toda uma forma de pensar. 

Me descobri mais aventureira do que moça casadoira. Me descobri mais amante ideal do que esposa. O que eu entendia racionalmente , passo a sentir com a pele. Por que duas pessoas que se amam precisam necessariamente morar na mesma casa? 

Nada contra morar na mesma casa e talvez um dia eu faça isso se encontrar alguém que valha a pena. Mas por que não estender o tempo do namoro? Por que não viver o amor com mais liberdade? Por que não curtir por mais tempo ou até mesmo por tempo indeterminado o lado gostoso do amor, sem sentimento de culpa, sem necessidade de provar nada a ninguém, muito menos a nós mesmos?

Por que misturar cuecas para lavar e mais um monte de chatices cotidianas com o amor? Mais uma vez, reitero que não tenho nada contra  dividir os afazeres domésticos. Mas hoje não vejo o morar junto como requisito essencial para se viver um amor. É mais uma forma de viver o amor como tantas outras. Uma forma mais exigente, mais madura, mais heroica para alguns e mais medrosa para outros. Depende da motivação que faz cada um escolher o casamento formal.

Me descobri mais filósofa do que religiosa. Mais bondosa do que boazinha. Mais trágica do que melodramática. 

Descobri que não preciso frequentar um culto para ser fiel a Deus e que não preciso engolir tudo para ser uma boa pessoa. Descobri que a tragédia é grandiosa e atemporal. Melodrama é coisa de livro de banca de jornal, cheirando a perfume de qualidade duvidosa e lágrimas fáceis demais.





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

A vida é perda

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Quando adoecemos, sentimos a vida receber um pause.  Uma simples sinusite faz cair por terra toda a agenda semanal,  adiando compromissos que nos pareciam inadiáveis.

Diante de qualquer doença, mesmo diante de uma sinusite, a vida se reconfigura e as prioridades são modificadas bruscamente. E é quando percebemos que nada é realmente importante e ao mesmo tempo sentimos que tudo é muito importante. Ouvi estas palavras de um professor muito querido, que fez a mim, um típico ser de Humanas,  gostar de Química. 

Ao sofrer um acidente de carro, sem consequências físicas, meu professor disse que ao ouvir o barulho dos carros passando na estrada enquanto ele esperava ajuda, fez ele perceber o quanto nos preocupamos exageradamente com coisas pequenas. Ele afirmou perceber que nada era tão importante assim. Ao mesmo tempo tudo é importante.

Sim, a vida é breve e caótica. Nada faz muito sentido. Encontrar e perder as pessoas. Amar e sofrer. Seguir o caminho A ou B. Não importa qual porta se feche ou qual porta se abra. Do outro lado encontraremos um emaranhado de venenos e bálsamos. 

Como dizia Oscar Wilde, a vida apresenta duas tragédias: não realizar o que se deseja e realizar o que se deseja. 

No final das contas estamos condenados a perder. A passagem do tempo é a mais viva prova da debilidade de nossa existência. Corpos debilitados continuam com a alma em chamas como qualquer jovem de 18 anos.

E se num primeiro momento a vitória parece o melhor dos acontecimentos, em alguns casos, a impossibilidade pode imortalizar o que mais queremos. 

Sim, caro leitor. A vida é perda.  Mas não se deixe levar pelo excesso de amargura e nostalgia. Apenas algumas gotas por dia enquanto escuta uma música triste e toma sua taça de vinho. 

E quando começar a sentir uma pontada de despeito, reaja ao estilo "A raposa e as uvas". Diga a si mesmo que esta coisa de ser feliz é meio brega e meio fake. 

Diga a si mesmo que esta coisa de ser feliz cheira a prato feito em refeitório de empresa acompanhado por um daqueles suquinhos artificiais doces demais. 

Diga a si mesmo que esta coisa de ser feliz soa a selfie enfadonha e à gente que não sabe apreciar um bom Chopin ou Mozart. 

Diga a si mesmo que esta coisa de ser feliz é típica de gente que nunca viu um filme de arte e se acha crítico literário sem ter lido um livro na vida além daqueles que ensinam a alcançar o sucesso dormindo ou peidando. 

Diga a si mesmo que tem certo glamour em perder e sofrer. E tome mais um gole do seu vinho tinto, convicto de que a não felicidade tem os seus gozos. 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Sobre faturas e fraturas não expostas

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Um pouco antes do almoço, pego uma taça grande e me sirvo de um pouco de vinho tinto. Ainda de camisola, depois do meio-dia, com a janela escancarada do quarto para aliviar um pouco o calor modorrento, acomodo-me confortavelmente na cama enquanto entro na fase final do romance "Precisamos falar sobre o Kevin". 

Bebericando de forma entojada meu vinho como se tivesse incorporado Eva, mãe de Kevin, penso com certa ironia que a minha vida era muito boa. 

Diante do computador, jogando estas palavras meio instintivamente, volto a pensar no tema "vida boa" e por mais que me sinta muito bem, tento entender por que ainda sinto uma espada atravessar a minha alma. Existe uma melancolia em mim semelhante à gordura de picanha.

Ok.Ok.Ok. A comparação foi grotesca. Melancolia tem mais a ver com taças de vinho tinto ou camafeus de nozes. Comparar melancolia com gordura bovina é de mau gosto, mas a comparação é pertinente. Não adianta extirpar a pobre da gordura. A gordura entranha na picanha da mesma forma que tenho esta melancolia colorida que  mareja meus dias. 

As cores me enlaçam, os sons beijam minha boca e um simples odor pode penetrar-me como a mais cálida e desventurada aventura amorosa.

Anteriormente sentia uma tristeza pontiaguda, folhetinesca. Minha tristeza era grande e implacável, me esbofeteava dos dois lados do rosto e eu quase pedia perdão por ser espancada sem dó nem piedade, raramente ganhando uma gotinha de afeto e calor humano.

Hoje tenho uma alegria pequena , express. Minha alegria é como um bom filme visto da tela de um Smartphone. Um bom filme que já conheço o final. Minha alegria tem gosto de comida boa ao estilo Outback. Sabemos exatamente o que virá pela frente. Um bom sem grandes expectativas ou desdobramentos. Minha alegria é banal. 

Antes eu mesclava momentos de heroísmo patético ( todo herói é um pouco pateta se a gente for parar para pensar. Para falar a verdade, nem é preciso parar mais do que 7 ou 8 segundos) com outros estridentes de anti-heroísmo.

Hoje , sou apenas eu mesma, bebericando meu vinho, com um olhar cético e cínico enquanto degluto minha alegria embaladinha, acompanhada por sachês de Ketchup e batatinhas fritas. Às vezes, prefiro comer um sanduba acompanhado por batatas assadas com alecrim para sentir que minha alegria é mais gourmet e menos banal. 





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Mais merda do que o permitido pela vigilância sanitária

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Quanto mais passa o tempo, menos saco eu tenho para teatrinhos de quinta categoria e joguinhos sociais enfadonhos. Nunca gostei deles, mas hoje posso assumir claramente meu horror diante da ação performática de algumas pessoas mascaradas.

Sou atriz e adoro representar outras vidas e realidades sobre um palco ou até mesmo no meio de um círculo em sala de aula.  Gosto de reinventar a minha própria vida com toques hiperbólicos, jogando uma lupa em cada uma das minhas cicatrizes e fazendo toda a merda que me aconteceu parecer ainda maior.

Mas gosto de representar quando as pessoas sabem que estou representando.  Considero a dinâmica social nojenta. A dinâmica social vivenciada pelas pessoas rasas, com suas mentes tacanhas envenenadas pelo senso comum, que professam banalidades com ares proféticos. Com ares de quem está falando alguma coisa que se aproveite.

Peço desculpas pela extrema sinceridade, mas a fala e estilo de vida de muitas pessoas não serve nem para limpar a bunda. A missão no mundo de um rolo de papel higiênico é mais honrosa e digna do que o bla blá blá de muita gente oca que veio ao mundo a passeio e para fazer figuração de babaca.

Me pergunto o que seria desta gente rasa e vazia, sem estilo, sem savoir faire se não existissem tantos padrões para seguir, tantas regrinhas imbecis.

Quem não tem personalidade e é incapaz de pensar com a própria cabeça precisa brincar a vida inteira mesmo de Siga o mestre. Fico imaginando quantas cabeças não mergulhariam num vaso cheio de bosta mole se as revistas de moda e as subcelebridades da TV começassem a divulgar que enfiar a cabeça na merda dá um brilho extra aos cabelos e que todas as pessoas bonitas da mídia estão adotando este hábito por ser legal. 

Em primeiro lugar, alguém poderia me definir o que é ser legal? Em segundo, como um ser teoricamente pensante pode adotar qualquer tipo de modismo sem entender o porquê dele?



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Coisas incríveis não arrombam portas. Tem que ir à luta!

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Sim, caro leitor. Coisas incríveis não arrombam portas. Coisas incríveis são vampiros às avessas. Elas precisam do nosso convite para entrar, mas elas não drenam nossa energia. Muito pelo contrário. Elas fazem a vida explodir em cores, em experiências e sensações múltiplas.

E mesmo que drenassem, e mesmo quando a fatura a pagar depois da beleza horripilante de um acontecimento incrível seja altíssima ainda vale a pena.

Coisas incríveis nos libertam mesmo que temporariamente da monotonia da vida. Elas tiram tudo do piloto automático das emoções bem comportadas e fazem tudo brilhar e gritar como fogos de artifício rasgando o céu.

Como esperar que algo incrível aconteça se colocamos mil cadeados na porta de nossa vida?

Como esperar ser tocado e transformado pelo amor se o medo é a palavra de ordem?

Como acumular lembranças divertidas e inusitadas se fazemos sempre tudo da mesma forma?

Como aprender sobre a gente mesmo se estamos atentos apenas ao que os outros pensam e desejam e esperam de nós?

Espremer laranjas e esperar por um suco de framboesa é no mínimo ilógico. A matéria-prima de uma vida incrível são atitudes inusitadas, espontâneas, criativas, cheias de afeto. 

As pessoas que se importam com as outras, que se entregam aos afetos, que se atiram na vida de forma apaixonada, vivendo experiências novas sem preconceitos, com o coração aberto, tendem a se tornar mais interessantes e com uma bagagem de vida mais rica.

Sim, caro leitor. Não é pensando e agindo como todo mundo pensa e age que alguém conquistará uma vida cheia de momentos incríveis, intensos, hiperbólicos.

Não é agindo como um bundão ou cuzão que você alcançará momentos incríveis. E se ficar esperando por garantias antes de dar qualquer passo, tudo o que conseguirá é a garantia absoluta de uma vida bocejante. 

Uma vida incrível acontece no vão entre as possibilidades banais e de praxe. Uma vida incrível exige por o ovo em pé, transformar o desconhecido em óbvio, fazer o que não esperam, cantar fora do tom, propor passos novos para a coreografia social, inventar um delicioso caco na dramaturgia da vida, misturar cores para inventar uma nuance bizarra, sair da zona de conforto.

Sem ousadia e destemor, a vida é na melhor das hipóteses confortável e tranquila.


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Um amor com presente

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Sempre desejamos um amor com futuro. Mas talvez devêssemos querer apenas um amor com presente. Como disse Renato Russo, o amanhã não existe.

E se me sinto confortável em seus braços hoje, por que deveria pensar eu se me sentirei perfeitamente encaixada no seu abraço daqui um ano ou dez?

E se eu vou me desmilinguindo como uma flor despetalada cada vez que  te vejo  , que direito tenho eu de tentar negar o inegável, esconder o que brilha como um néon vermelho de hotel barato?

E se eu espero por um abraço seu como quem espera por um pouco de água depois de ter atravessado a pé um deserto, como posso dizer a mim mesma que te esquecer é questão de tempo?

E seus abraços sempre são breves  por mais longos que sejam. Eles me deixam com mais sede de sentir os seus braços em mim. E o seu cheiro fica impregnado na minha memória  como uma adaga cravada no peito.

E se é cruel comigo com sua altivez falsamente despretensiosa, seu jeito blasé que olha fundo a minha alma, é porque sabe que pode me manusear a seu bel prazer, brinquedinho manipulável, joguete que se revela a cada cartada. 

E eu espero a sua deixa para dizer a minha próxima fala. E eu espero que me conduza, pois caso contrário, ficarei parada no meio do salão à espera de alguém mais forte. Alguém capaz de dobrar a minha vontade.

Sim, quero um amor com presente. Um amor com gosto de algodão doce, envolto em tules cor-de-rosa, estourando no ar como bolhas de sabão ao som de violinos.

Sim, quero um amor com presente. Um amor que faça cócegas na alma e machuque de leve o peito. Quero um amor que brilhe como purpurina numa  sessão de cinema domingo à tarde.

Quero um amor que saia voando por aí como um balão com gás. Quero um amor que faça me olhar para o alto e me abrace despudorado. 





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Amor é um prato que se come quente, pelando...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Se vingança é um prato que se come frio, o amor deve ser comido bem quente, pelando, tirando pele da língua.

Amor se tira do forno da imaginação e sem desenformar mesmo, a gente corta um pedaço bem grande e enfia na boca de uma vez só.

Ok.Ok.Ok. Não é bem educado nem elegante colocar muita comida na boca de uma vez só. Mas quem disse que o amor é bem educado ou elegante? O amor é o que é.  Nunca sai de moda.  E fica bom fervendo, com calda bem doce por cima, raspinhas de laranja, sorvete de creme, bolas de chantili e garfadas fartas.

Amor é para ser comido sem moderação, sem contar caloria. E se sujar os lábios devorando-o não há o menor problema, muito pelo contrário. Amor bom é o que suja. É aquele em que a gente se lambuza sem medo de sentir prazer.

Amor tem que se desmanchar na boca lentamente e profundamente, provocando gemidos mudos e gritos internos, uma alegria insuportável rasgando tudo por dentro, molhando  os olhos e a alma.

Amor é o que é. É sempre bom. É sempre indigesto.




Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.


Acho que encontrei a mim mesma quando me perdi

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Lendo hoje um post com um pensamento de Paulo Leminski fiquei inspirada a escrever este pequeno artigo. Estava decidida a deixar a garota desbocada falando sozinha hoje, mas Paulo Leminski me induziu a fazer companhia a esta garota que me atropelou recentemente e que conheço dia a dia com um pouco de medo. 

Ela me enreda num jogo complexo com seu sorriso assimétrico. Ela é bem exigente. Ela tira sarro de mim antes de me afagar e me encher de beijos. Sim, gosto dela. Gosto da garota desbocada muito mais do que gostei um dia de mim mesma.

Mas vamos aos post! " Salve-se quem quiser. Perca-se quem puder".  Sim, perder-se é muito mais complicado do que salvar-se. Salvar-se é protocolar, está minuciosamente descrito e explicado no manual social.

Salvar-se não cria ruído. É remar a favor da maré. É dizer sim quando esperam o seu sim e dizer não quando esperam o seu não. É ceder à vontade de quem pode mais. É tornar-se parte da cenografia do teatrão social em que cada recebe um papel e gostando ou não dele, deve-se fazê-lo com precisão cirúrgica e ares de profunda resignação, pensando frases do gênero" Um dia as coisas melhoram. Um dia chega a minha vez".

Não! As coisas não melhoram! Aprendi isso com a minha mãe. As coisas pioram porque envelhecemos, adoecemos, perdemos os entes queridos e as falsas esperanças que anestesiam a vida. 

A nossa vez nunca chegará se não tivermos voz. Muitas vezes lutando e gritando não adianta muito. Calado é que a coisa não rola mesmo.

Salvar-se é aceitar ser subjugado, anulado. Sim, salvar-se é simples. Sempre tem alguém vomitando em nossos ouvidos que a vida é assim mesmo. É o que esperam.

Perder-se não...para perder-se é preciso muita coragem e savoir faire.  É preciso ultrapassar os limites do próprio medo, da própria dor. 

Perder-se exige criatividade, ousadia. Perder-se exige se deixar levar, sem bússolas ou GPS, é deixar-se levar sem tentar encaixar tudo numa planilha. É abrir mão de certezas absolutas. 

Perder-se exige que deixemos de controlar a situação. Perder-se é soltar as rédeas da vida e galopar ao sabor do talvez. 

Recentemente, percebo que é bom perder o controle. A perda do controle traz à tona o lado mais humano, mais tenebrosamente lindo. Só quem perde o controle deixa-se desnudar em seu lado mais verdadeiro. Se é que existe alguma verdade...


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Então, tá combinado

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS



Ouvir a música "Tá combinado" de Caetano Veloso na voz de Maria Betânia me rouba qualquer possibilidade de dissimulação ou tentativa de pôr uma ordem, mesmo que meia boca, no caos.

Nunca, nada,   absolutamente nada está combinado quando o assunto é amor.

Mais cedo ou mais tarde, como se costuma dizer popularmente, alguma coisa qualquer dá merda. E quando dá merda, não tem mais jeito. A alma fica marcada, a alma fica impregnada de beleza e horror. 

A alma fica impregnada de intensidade e com olhos cheios de perplexidade, olhamo-nos sem conseguir explicar o que entendemos desde sempre.

Não. Nada, absolutamente nada está combinado. Sempre quis alguém que pegasse em minha mão com força e com um simples olhar me convidasse para nos atirarmos nos abismos das possibilidades múltiplas. 

Sempre quis me perder dentro de alguém que se achasse em mim. Duas crianças travessas se descobrindo  por meio do outro.

Não há nada mais cafona do que esta história de duas metades da laranja. Sou uma laranja inteira, pronta para ser descascada e devorada por uma alma ávida.

Não há nada mais chato do que esta história de encontrar alguém para te pôr na linha. Bom mesmo é sair dela e andar trôpega por aí, sem rumo, sem siso, com riso fácil na boca de coquete.

Agora escuto "Flor amorosa" de Joaquim Calado, na voz de Maria Martha, música que divinizo desde os cinco anos dançando de forma desajeitadamente buliçosa. 

Sim, não ouvia músicas da Xuxa aos cinco anos. Eu gostava de "Flor amorosa", "Carinhoso" e músicas de gente que já sabe como é gostoso  sofrer por amor. 

Tudo bem que com cinco anos as paixões não são tão complexas. Mas podem ser intensas e apenas superadas por uma Barbie nova.

E entre choros e bossa nova, vou caminhando meio sozinha, despencando dos meus abismos interiores e imaginários. Nada que importa pra valer é real.

A palavra realidade me cheira a café requentado depois do almoço coletivo no refeitório da empresa. 

A palavra realidade soa como música de qualidade duvidosa na altura máxima numa tarde calorenta.





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Sushi com aconchego às dez da manhã

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Já comi comida baiana em uma aula que dei sobre Cultura, Comunicação e Mídia. Farofa com abobara, carne seca, muita pimenta e afeto. Caruru. Cachaça temperada. Desta só aspirei o cheiro com um biquinho de menina mimada pois estava tomando Rivotril na época. E não queria ficar mais louca do que já sou normalmente.

Hoje, outra turma, outro semestre, outro curso, outra disciplina, comi sushi às dez da manhã. O fechamento com chave de ouro de um ensaio fotográfico sobre cultura japonesa.

Olhei para a minha mesa de professora encostada na lousa, servindo de apoio para as iguarias.
O que não se aprende na prática, a teoria não resolve.

A Cultura e a Semiótica não estão aprisionadas nos livros como Rapunzel no alto da torre, esperando que a salvação venha de fora.

Os livros e a teoria são ferramentas essenciais de trabalho. Mas sem vivência, sem o embate do dia a dia,  sem o corpo a corpo, sem pegar a câmera na mão  e sair por aí imprimindo o nosso olhar sobre o mundo, tudo se resume a decoreba e tédio.

Sem sair por aí fazendo poesia em cima da vida, sem sair por aí experimentando novos olhares,  mastigando saberes, se atirando em abismos de possibilidades, a teoria é só teoria e tudo se resume a tempo perdido e bocejos.  

É preciso comer sushi às dez da manhã, farofa com abobara e carne seca a qualquer hora do dia e da noite. É preciso degustar a vida como a mais perfumada e temperada das cachaças sem medo de engasgar ou ficar tonto.

É preciso riscar o verniz das aparências, olhar de frente o que se esconde por detrás das máscaras, despi-las uma por uma, sem dó nem piedade, furiosamente como quem arranca as cascas de uma cebola.

É preciso contrariar o tédio, desafiá-lo, chamá-lo para um drink ainda de manhã.

É preciso pronunciar o impronunciável. Dizer o indizível. Criar palavras novas para sentimentos velhos e resgatar palavras velhas para novos sentimentos.

É preciso olhar nos olhos sem medo de mostrar a que veio. Nem calar o que se sente no peito. É preciso sorver até á última gota de tudo que realmente importa.


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

domingo, 8 de novembro de 2015

Más recordações

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Pensando hoje na música de abertura de uma novela bem antiga chamada O outro ( O outro é o nome da novela). A música se chama Flores em você. Lembrando desta música , pensei que ela poderia muito bem ser o tema de um filme sobre a minha vida.

Em um determinado momento, ela diz "De todo o meu passado, só guardei más recordações. Quero viver o meu presente e lembrar tudo depois".

Sim, seria a trilha ideal. Não sei o que considero mais detestáveis: as boas ou as más lembranças.  Mas diferentemente do compositor da música, só quero viver o presente. Prefiro não lembrar.

Como diria Nietzsche, lembrar é cair na nostalgia ou reviver algo muito triste.  Se acabou, acabou independente de ter sido bom.

Cada vez mais odeio a nostalgia com suas mãos geladas e unhas afiadas nos arrastando para os abismos do impossível.

Bem recentemente me dei conta de que tenho muito mais coisas tristes para lembrar do que alegres.  Tal sentimento é nefasto e libertador em medidas semelhantes.

Só agora me dou conta de que até mesmo os momentos normais e banais eram tristes para mim. Poucos momentos me fazem voltar ao passado com uma nostalgia saudável e prazerosa.  

Talvez os momentos em si tenham sido apenas momentos, amorais. Nem tristes nem alegres. Talvez, a triste tenha sido eu.

Talvez tenha sido eu que tenha entristecido os momentos. Talvez eu devesse voltar ao meu passado para pedir perdão a ele. Pela minha incapacidade de ver beleza. Pela minha incapacidade de ser mais generosa com o desenrolar dos fatos. Como me questionou uma pessoa uma vez: "O que você espera da vida?" ( a palavra exata não foi vida, mas tudo bem...é uma licença poética). Escritores têm o direito implícito e quase divino de adaptar fatos. Faz parte do nosso charme infantil.

Ele questionava se eu queria fogos de artifício. Sim! Eu quero fogos de artifício! Eu quero glitter e purpurina. Eu  quero confete e serpentina e glacê. Por que não deveria eu querer qualquer coisa que brilhe como luzinhas natalinas?

Falando em festas de fim de ano, este é outro tema que me deixa de bode...mas deixemos para lá...pelo menos por enquanto, pelo menos neste domingo em que me percebo com uma tristeza endêmica.

Às vezes, penso que gente da minha laia deveria ser toda colocada contra um paredão e ser fuzilada. Falta de piedade? Não. Muito pelo contrário.


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

sábado, 7 de novembro de 2015

Sou pavorosa

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

 Li uma reportagem em que uma jovem de 18 anos afirmava que nenhuma prótese é melhor do que um órgão debilitado. Nenhuma verdade, por pior que seja, é inferior a um simulacro.

Tentei fugir de mim mesma, atirando a minha libido nas panelas e reciclando minha loucura em um amor gentil, com gosto de bolinho de chuva preparado por mãos de mãe.

Tentei desviar o olhar do abismo que sempre caminhou pregado no meu destino, me reinventando como alguém que tem o meu rosto, mas que esconde meu sorriso docemente cáustico por detrás de uma serenidade que nunca tive.

Sou pavorosa. Sob a maquilagem de moça casadoira, meus olhos brilham cruelmente, cheios de um desejo dilacerante que me corta as carnes da alma como a ponta fina e fria de um punhal.

Tentei fugir de mim mesma , me livrar de minha tenebrosa luz cheia de sombras em braços cordiais.

Devo ter lançado mil olhares de súplica e desespero a todos que passaram por mim, sem olhar-me ou olhando-me com disfarçado desprezo.

O excesso de polidez é o que mais fere uma mulher. Chega a ser imoral. Deixa marcas roxas na alma e um gosto de nada no coração.  Deveria ser punido por lei. Deveria ser considerado pecado mortal.

Tentei fugir de mim mesma , da minha incrível potencialidade para o caos em uma rotina cheia de um ensaiado amor.

Tentei fugir de mim mesma combinando o inusitado,  criando regras que não poderia respeitar, virando as minhas costas tristes e cansadas para tudo aquilo que não queria ver.

Tentei fugir de mim mesma, prendendo-me a alguém que me impedisse de ser eu mesma, que me impedisse de explodir em loucura e êxtase.

Criei todo um mundo de falso afeto para fugir ao horror que tenho de mim, da minha passionalidade estridente e cálida, da minha boca profana, dos meus olhos perversos, dos meus desejos insaciáveis, do meu talento inato para a tragédia ,  para o amor louco e a efemeridade.

Vejo-me sem disfarces através de seus olhos e sinto medo. Sinto uma alegria insuportável rasgar-me ao meio.  Quase gargalho enlouquecida e em febre.

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Sobre sombras e luzes

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Ontem à noite, assistindo às apresentações fotográficas de alunos , em determinado momento pedi para que apagassem as luzes da sala que foi revertida numa galeria improvisada de arte e sonhos por alguns momentos.

Pedi que apagassem as luzes fortes e impessoais de banco e sala de aula para poder ver as luzes da imaginação, muito mais sutis, eloquentes e sedutoras.

Às vezes precisamos cerrar os olhos para ver e tapar os ouvidos para escutar o que realmente importa, o que realmente penetra a alma com languidez brutal.

Às vezes é preciso apagar as luzes estridentes e frias das certezas estabelecidas, as luzes oficiais, para mergulhar na profundidade das luzes da alma.

Mais do que mergulhar nas luzes da alma. É preciso se enfronhar em suas sombras projetadas, brincar com elas, tocá-las, acariciá-las num gesto lento e fatal.

São nas sombras das luzes íntimas que encontramos ou imaginamos encontrar a nós.

Apenas os puros de alma conhecem as luzes do destemor. Apenas os puros de alma mergulham em suas sombras e as integram com suas luzes que formam novas sombras num jogo insano rumo ao infinito das possibilidades múltiplas.

Olhar para dentro de si é olhar para um mosaico infinito de espelhos. E tudo que nos resta é continuar mergulhando...


 
 
 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A vida como arte

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Se a vida fosse uma obra de arte ( e às vezes ela é realmente) poderíamos estabelecer paralelos deliciosos entre o nosso mais banal dia a dia e obras que marcaram a História das setes artes.

Quando fazemos arranjinhos sociais, pequenas conspirações domésticas, tomando chá e comendo bolinhos, a vida fica com ares de Jane Austen.

Quando uma tia ou amiga mais velha e experimentada nos diz calmamente como devemos nos portar para transmitir confiabilidade a um homem e consequentemente conquistar vantagens, sinto-me na pele de Lizzy Benett.

Quando tudo foge ao controle e a paixão surge brutal, impiedosa e redentora, posso fechar os olhos e ouvir "Esperame en el cielo", música tema do filme "Matador" de Almodóvar.

Quando mergulhamos num romance intelectual e verborrágico que mais se parece uma amizade do que namoro e faz-se sexo oral falando literalmente, me vejo num filme da Nouvelle Vague ou de Woody Allen.

Quando apaixonar-se torna-se o pior dos martírios, a mais miserável das desgraças, recordo-me das irmãs Brontë e suas literaturas desconcertantes.

Quando me sinto forte e destemida e lanço um olhar sedutor para mim, balançando brincos de strass numa atitude infantil e egóica, sinto que o mundo pode ser meu como pensava ingenuamente a desafortunada Scarlet O'Hara.

Quando o tédio parece a companhia perfeita para um fim de tarde modorrento, tudo que desejo é um copo de vinho e um livro como "A idade da razão", de Sartre.

Quando entro no metrô e penso nas milhares possibilidades desconhecidas da vida e do prazer, calçando minhas botas surradas, imagino-me como a personagem de Maria Schneider em Último tango em Paris e basta colocar um chapéu exótico e lançar um olhar ao nada para me transformar na melancolicamente erótica escritora francesa Marguerite Duras quando era ainda uma menina. 

Quando corro pela rua, arrastando algum aluno pela mão, sinto-me Eva Green em "Os sonhadores" , imitando um filme de Godard.

Quando estou cansada e farta de tudo, dos nojentos mecanismos da sociedade, me sinto tão esmagada quanto Judas do romance Judas, o obscuro de Thomas Hardy. E quando me revolto contra Deus e sinto uma saudade insuportável, penso em Graham Greene. E quanto sinto o inconformismo paralisar meu ser, me lembro da intensa April de "Revolutionary road". E quando me maquio na frente de um espelho e vejo a mim mesma, penso na atriz de Gabrielle Collete.

Normalmente me sinto bem como a Lucília de "Floradas na serra": destemida e patética. Mas incorporo bem a suave professora de "Jane Eyre", um resquício de bondade no inferno.

Às vezes, a vida assume as cores falsamente suaves de uma música clássica. Em outros momentos, sai-se para dançar ao som de um ritmo mais popular e buliçoso ao estilo Chiquinha Gonzaga.

Às vezes, a vida se torna uma arte ultra pessoal e passional como os quadros de Frida Khalo ou sedutoramente melancólica como os de Modigliani ou  relaxante e delicada como os de Monet.

Às vezes  a vida se torna uma ópera. Em outros momentos, tragédia, comédia, melodrama barato de banca de jornal.

Sim, pensando bem a vida é arte sim. Basta olharmos com os olhos da mente.



 
 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

Um bom livro

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Indo e voltando de Brasília neste último feriado, mergulhei em uma deliciosa leitura que fez o tempo passar incrivelmente depressa.

Não sou mineira, mas tenho o costume de chegar bem antes nos compromissos. Fiquei um tempão sozinha no aeroporto, mas o tempo passou bem depressa graças a minha inestimável companhia: um livro que apresenta o olhar de um psicólogo sobre o cinema.

Adoro bater papo com pessoas desconhecidas que viajam ao meu lado, mas naquele dia o livro me bastou.

É delicioso quando um livro nos absorve e quando não precisamos ler mecanicamente, por obrigação.

Sou fascinada por tudo aquilo que faz a minha imaginação fluir e minha mente se expandir. Meus neurônios são polvos que adoram agarrar com seus tentáculos novos saberes, novas informações, novos olhares ou simplesmente rearranjar o que eu já conhecia ou pensava conhecer.

Diante de um conhecimento novo, um parágrafo desconcertante, uma cena impactante, sempre fico com os olhos meio estatelados e os lábios entreabertos. Parece que quero engolir a novidade e torná-la parte de mim como uma boa mordida num sanduíche delicioso, que mastigamos meio ansiosamente, entre gemidinhos desfalecidos.

Não consigo imaginar uma vida sem aprendizado, sem estudo, sem leitura, sem filmes de arte, sem conversas densas com pessoas peculiares, sem monólogos internos, sem livros instigantes durante voos domésticos. Sem livros avassaladores numa tarde cinzenta de domingo, em que do mundo real só existe o cheiro de café fresco e fumegante.

Encontrar um bom livro é como fazer um amigo ou apaixonar-se. Uma paixão correspondida, pois o livro não escapa de nossas mãos ávidas por virar a próxima página e degustar a emoção seguinte.

Bons livros fazem a cama ficar mais macia, o tempo mais fluido, a vida com mais sentido.

Se por um lado, bons livros nos entristecem pois desnudam todo o nosso potencial para a tragédia, eles nos salvam mesmo que temporariamente da mediocridade da vida.

 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas