segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Sobre vítimas e heroínas

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Esta semana revi pela milésima vez o filme "...E o vento levou". Sou completamente louca por este filme desde os 11 anos de idade , quando o assisti pela primeira vez. 

Em 1995 , quando cursava o terceiro ano do ensino médio, nossa querida professora de Literatura , montou no meio do ano um espetáculo teatral conosco. 

O tema escolhido foi o amor. O amor na Literatura. O amor no Cinema. O amor no cotidiano.

Interpretei Scarlett O'Hara no segundo ato da montagem.  Quando planejei a minha caracterização, achava que seria muito difícil  ficar parecida com a personagem. Usava cabelo chanel na época. Minha mãe me convenceu a comprar uma peruca para tornar a caracterização mais profissional. Por trás de uma adolescente artisticamente profissional, muitas vezes, está uma mãe irreverente mesmo que aparente ser uma lady bem comportada e tradicional.  Sim, esta é a minha mãe. 

Aluguei um vestido de época, fui maquiada e penteada num salão de beleza. A minha cabeleireira usou a peruca como meia peruca para alongar e avolumar os cabelos , mas sem alterar muito a fisionomia. Ela inclusive fez uns cachos na peruca copiando um dos penteados utilizados pela personagem. A maquiadora viu o filme para fazer uma maquiagem que me deixasse o mais semelhante possível  com a atriz. 

Embora estivesse empolgada com toda a preparação, não botava muita fé que ficaria realmente parecida com Scarlett. Mas até a minha melhor amiga , uma garota bem exigente , olhou para mim admirada , dizendo que eu estava parecida com Scarlett. Eu parecida com Vivien Leight? A estudante secundarista tímida e com espinhas, parecida com Vivien Leight?

Quando cheguei à escola aquela noite e atravessei o saguão que levava até o auditório onde apresentaríamos a peça, uma colega precisou se aproximar de mim para descobrir quem eu era. Sim, meus colegas ficaram estupefatos. Diziam empolgados que eu estava linda. Que eu não estava parecida comigo. Sorria internamente. Estranhamente , a gafe não me magoou. Estava feliz demais para isso. E quando perguntaram sobre meus cabelos compridos, disse algo do tipo , num tom jocoso: "Botei fermento e eles cresceram".

Com a minha aparência mais favorecida, comecei a descobrir a minha língua. Um gênio forte ou um senso de humor mais ferino sempre é melhor aceito numa mulher atraente.

Ao chegar em casa depois da apresentação, depois de ter arrancado aplausos calorosos de uma plateia de 500 pessoas ( com direito a assovios e pessoas em pé) descobri que ser caracterizada como Scarlett foi a parte fácil da tarefa. Difícil era lavar a cara , desmanchar o penteado, despir o vestido e voltar a ser Sílvia Marques: a estudante tímida, com espinhas, que odiava ir á escola. Me sentia presa. Apenas quando escrevia , fazia seminários ou interpretava me sentia livre. O palco parecia realmente ser o meu habitat. 

Anos mais tarde, fazendo curso profissionalizante de teatro, um professor nos disse que o palco não era espaço de Deus. Era espaço de Dionísio. Sorri internamente. Sim, ele estava certo. Sobre o palco, garotas populares da escola se tornavam pouco atraentes, sem vida. E eu passava a existir. 

Ainda no colegial, comecei a pensar que talvez a Sílvia Marques tímida e com espinhas tivesse lá os seus encantos. Afinal de contas , mesmo maquiada e bem arrumada, era eu que estava sobre aquele palco. Era o meu corpo e a minha voz que estavam dando vida à Scarlett naqueles 5 minutos mágicos. 

Sim, sempre amei Scarlett. Uns dois anos antes de interpretar  este papel, eu gostava de imitá-la no banheiro aqui de casa. E até hoje , toda vez que me sinto triste e desanimada, quando sinto que estou farta de lutar e quebrar a cara, penso nela e na sua coragem. 

Semana passada , fazendo um teste pela internet, depois de responder a 14 perguntas, saiu o resultado que dos personagens que ganharam o Oscar , eu poderia ter sido a Scarlett. Não me vejo tão forte quanto ela. Mas por outro lado, sei que já lutei em muitas guerras e recomecei do nada mais vezes do que a maioria das pessoas que conheço. 

Posso não ser bela como foi Vivien Leight e a própria Scarlett. Posso não ter sido amada como ela foi por Reth Butler. Nem passado fome. Nem enfrentado os horrores de uma guerra. Mas ainda assim, acho que o resultado deste teste faz algum sentido. 










Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário