quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Alergia a protocolo

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
Sou alérgica a muitas coisas. Um simples batom pode agredir a minha pele frágil em determinadas épocas.  Nenhuma mulher egocêntrica como eu deveria ter alergia a batom ou a qualquer outro cosmético. É antinatural. É um crime contra a natureza. Mas nada provoca mais alergias em mim do que protocolos.
 
A pele da alma se irrita e fica avermelhada e eu inteira quero entrar em erupção num grito estridente para depois deixar-me cair num grande divã de pelúcia vermelha, cheia de lascívia e um profundo tédio.
 
O único protocolo aceitável para mim é filosofar com uma taça de Martini numa das mãos e um cigarro na outra. Sou fumante no sentido simbólico.  Em minha mente, sempre me vejo dizendo algo genial depois de expelir por minha boca pintada de vermelho a fumacinha tóxica do cigarro junto com minhas palavras envenenadas.
 
Outro protocolo mais do que aceitável: devia ser garantido por lei o direito de ser feliz pelo menos três horas por dia. Deveria haver um rigoroso sistema de fiscalização com multas e detenção para aqueles que se recusam a ser desgraçadamente felizes durante três horas por dia. Assina-se o ponto ou bate-se um cartão e por 180 minutos ou se é muito feliz ou aguenta-se as consequências depois.
 
Quem se recusa a seguir a lei à risca é punido com litros de cerveja gelada, caixas de bombons cremosos recheados de cherry, fatias fartas de picanha com gordura bem quente, banhos demorados em banheiras de hidromassagem gigantes que massageiam todo o corpo de uma vez só,  sessões de reflexologia ( massagem nos pés que surtem efeitos por todo corpo)  de uma hora de duração enquanto um cd roda com as nossas músicas preferidas intercaladas por juras de amor.
 
Depois de gozarmos pela pele, pelo paladar, pelos ouvidos, por nosso ego inflado, assina-se o ponto ou bate-se o cartão novamente. Pronto! Missão cumprida. E sai-se meio tonto da seção burocrática do prazer renovado para mais 21 horas de mesmices e chatice na veia.
 
Mas voltando à alergia a protocolos...sou muito dispersa. Acho um verdadeiro saco esta história de ter que usar roupa assim ou roupa assado para garantir uma imagem idônea. Algumas pessoas, para não dizer muitas, levam este papo mesmo a sério. Se não criasse tantos problemas e dores de cabeça, eu me espatifaria de tanto rir.
 
Mas quando o ridículo passa a ser o oficial a coisa não fica tão hilária assim.  Quem já não ouviu frases do tipo: "Não, não vou trabalhar de tomara que caia. De jeito nenhum". A pessoa fala com ares de quem se manteve casta até os 60 anos de idade. Sim, usar uma blusa tomara que caia num verão de 35 graus é um absurdo, uma bofetada bem no meio da cara de todo um sistema moral.  Subir na carreira, na vida tendo amantes e como diria Machado de Assis , amando as pessoas por X mil reais é algo completamente banal, um pequeno mal necessário para alcançar um posto de respeitabilidade em que shorts e tomaras que caia são queimados em uma grande fogueira de purificação.
 
Ok. Ok.Ok. Estou virando uma tiazinha rabugenta. Talvez o tenha sido sempre, sem perceber, sem me dar conta.  Talvez tenha somatizado toda a minha indignação na forma de infecções de garganta e outros achaques.  Talvez até a alergia pelo batom tenha surgido assim...
 
Não aguento mais este papo de ter que aparentar. A gente não precisa aparentar porra nenhuma. A gente precisa ser. A gente precisa ser o que a gente é. Parece fácil, né? Não há nada mais difícil e tortuoso do que se chegar até o cerne da gente mesmo. Não há nada mais tortuoso e prazeroso. Imagino se todos os super egos fossem amordaçados! Veríamos um monte de IDs saindo por aí pelados, gritando, pedindo mais espaço para respirar e ser ele mesmo. Um brinde aos caos!
 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.
 

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