sábado, 23 de janeiro de 2016

Sobre os calos das mãos e da alma

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Quando eu era bem jovem, bem jovenzinha mesmo ( entre 11 e 12 anos) eu adorava passar as tardes de sábado e domingo fechada em meu quarto escrevendo.

Não se usava computador naquele remoto tempo e nunca curti máquina de escrever. Então, o jeito mesmo era lotar cadernos e mais cadernos com minha letra horrorosa e expansiva. Resultado: tinha um calo em um dos meus dedos de tanto usar lápis e caneta.

Esquecia-me de tomar água , lanchar e usar o banheiro. Ficava um pouco corada pela luz forte da luminária e pela própria emoção despudorada de escrever tantas sandices naquelas horas caseiras.

Como Marguerite Duras tentava recriar o mundo por meio da minha literatura. Acho que me sinto verdadeiramente em paz apenas quando escrevo. Sinto-me verdadeiramente conectada comigo mesma e com tudo e todos que mais amo.

As palavras me parecem o único meio de tentar sobreviver a um mundo que não compreendo e que nem quero compreender por ser sórdido demais.

Não entendo as relações sem vigor e uma dose de passionalidade.  Não entendo como as pessoas podem passar pela vida sem calos na alma.  Sem entregar-se despudoradamente a nada.

Não entendo como alguém pode dizer não ao amor. Nunca pude. Nunca fui capaz de deixar para trás quem eu amava ou imaginava amar.

Como escrevi num livro que ainda não foi publicado, penso que quando duas pessoas se amam, elas deveriam ficar juntas, sob qualquer circunstância.

Sim, eu sei. É um pensamento simplório para uma professora doutora. É um pensamento simplório para uma mulher de 37 anos. A sociedade já deveria ter me moldado aos padrões do status quo.

Eu já deveria ter aprendido a dissimular , a sublimar , a amar por conveniência.  Eu já deveria ter aprendido a negar a mim mesma.

Sim, eu já deveria ter entendido e aceitado que o mundo é como é e que lutar contra ele é dar murro em ponta de faca. É inútil. Eu já deveria ter assimilado que o amor é o que menos importa em uma relação.

Sorrio para mim mesma. Para o calo do meu dedo que ainda posso sentir. Para os calos da minha alma. Sorrio o sorriso desgraçado daqueles que nunca aprendem.

Escuto agora o tema do amor, de Andrea Morricone, música principal do filme Cinema Paradiso e penso: quando tinha apenas 17 anos, ao assistir pela milésima vez a sequência final deste filme, eu já sabia que estava destinada a não encontrar o amor. Ou o encontraria dezenas de vezes, depois de caminhar por léguas e léguas,  para perde-lo no minuto seguinte.  Continuei buscando-o por pura teimosia.

Lá no fundo, acho que soube desde sempre que a minha passagem pelo mundo seria como atravessar sozinha um longo deserto. 


 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 













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