Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
Não, não falarei da violência urbana de Sampa. Não falarei
do medo de pegar o metrô vazio e ver alguém com olhos estranhos me olhando. Não
falarei do medo de chegar na casa de alguém que tem um cachorro bravo, mas por
achar seu Totó super mansinho o deixa solto. Falarei sobre o medo de passar
pela vida sentindo gosto de café frio, de comida requentada, de feriado mal
aproveitado, de sorriso amarelo diante da inexpressividade das pessoas.
Sim, grande parte das pessoas é inexpressiva. Quase todo
mundo para não dizer todo mundo quer deixar sua marca na História, mas poucos,
pouquíssimos pagam o alto preço de ser o que é.
Queremos amar , mas não sabemos nos entregar. Temos medo,
vergonha , nojo de sermos manipulados pelas mãos e pela imaginação do outro. Nos
trancamos em casulos de pseudo autossufência e sorrimos um sorriso de canto de
boca, assimétrico e desdenhoso, fingindo para nós mesmos que a solidão tem suas
vantagens. Fingindo para o mundo que finalmente captamos o segredo de não
sofrer.
Queremos brilhar, mas ficamos horrorizados diante da luz e
de tudo aquilo que ela nos traz. É doloroso ficar na berlinda , no proscênio da
vida, no olho do furação. A mesma luz que nos faz brilhar, nos esbofeteia , fere
os olhos, nos nocauteia, revela ao mundo todas as nossas falhas e excessos como
uma lâmpada fluorescente sobre um quadro que precisa de retoques, com camadas mais grossas de tinta.
Queremos dizer e expressar , mas sem correr riscos. Queremos ousar, mas sem quebrar regras.
Queremos ir além parados no mesmo lugar quieto e frio da alma. Queremos gritar
e gozar, mas sem tocar e sem sermos
tocados por ninguém, numa espécie de zona morta , ponto cego das emoções, em
que nada acontece além do tédio.
Queremos ser nós mesmos, mas sem nos indignar , sem cuspir
na cara do mundo que um monte de coisinhas da moda e consideradas “tudo de bom”
nos dão nojo.
É preciso sorver até a última gota o vinho das emoções
profundas. É preciso embebedar-se com a própria insanidade para enxergar a tudo
com lucidez. É preciso ter muita coragem para experimentar os prazeres
comezinhos da vida e amar um amor puro, sem mas nem poréns.
É preciso ser muito
ingênuo para se atirar no mundo com o intuito de mudá-lo. É preciso derramar o
próprio sangue e coração, oferecê-los numa bandeja de prata para ser alguém
que deixa marcas. Ninguém fica impresso na História se não se deixar esfolar na
alma.
Viver é a mais impudica e insolente das artes. É o mais
escandaloso dos romances. O mais proibido dos livros. O mais impreciso e subversivo dos
discursos. É preciso encarar e aceitar a própria sordidez para encontrar o que
temos de mais belo e verdadeiro.
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, filmes bizarros e pessoas profundas.