Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
Assistindo ao filme "A garota dinamarquesa" , senti em minhas próprias carnes o horror que deve ser carregar um corpo que não nos pertence. Imaginei-me com um pênis e enchi-me de repulsa e constrangimento.
Lembrei-me de mim mesma , nua no banheiro, o vapor do banho quente invadindo as paredes , maculando o espelho e os meus olhos hipnotizados por meus próprios seios , felizes por aquelas duas massas redondas de carne branquinha pertencerem a mim. Mais do que isso: serem uma extensão e um reflexo da minha própria alma histericamente feminina.
Levanto os braços para segurar os cabelos e olho para mim mesma. Os seios suspensos, atrevidos , cheios de si, cheios da petulância típica daqueles que estão e sempre estiveram onde deveriam estar.
Sim, meus seios são eu mesma. Meu corpo não é um estranho para mim como o corpo do pintor Ernie Wegener era para ele.
Em uma cena tocante , ele completamente nu diante do espelho, esconde o pênis entre as pernas. Normalmente no cinema e na literatura , quando um personagem se olha diante de um espelho, enxerga muito mais do que o próprio corpo.
Ernie quer se livrar daquele corpo que é uma aberração. Aquele corpo é um estranho para ele. Uma deformidade que deve ser extirpada para que todos possam ver o que para ele já era óbvio. Na verdade , o que para ela já era óbvio. Muito antes de extirpar o pênis , Ernie já era Lili. Muito mais feminina do que muitas mulheres. Talvez antes mesmo da cirurgia , ela já fosse mais mulher do que muitas pessoas que possuem um genital feminino.
O médico construiu uma vagina física, mas Lili já possuía a sua vagina emocional. Uma vagina que escapava do seu olhar doce , dos gestos fluidos e timidamente coquetes, da beleza comovente com que erguia a cabeça lentamente, como se diante dela houvesse todo um mundo de possibilidades múltiplas e mágicas a serem descobertas, desnudadas , devassadas por sua feminilidade pungente.
No final do filme , Lili diz se sentir inteira...quantas pessoas podem dizer tal frase com total convicção? Quantos de nós somos realmente inteiros? Quantos de nós somos realmente nós mesmos?
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.
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