sábado, 30 de julho de 2016

Urgência

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Tem horas que precisamos esquecer o celular em casa. O pudor debaixo da cama , tremendo escondido sobre o chão frio e duro.
 
Tem horas que precisamos sair com a roupa do corpo, cabelos ao vento, a boca suja e a alma lavada de ímpeto e destemor.
 
Tem horas que precisamos carregar o mundo numa bolsa pequena para que as emoções grandiosas e múltiplas transbordem do coração amplo e sorridente.
 
Tem horas que precisamos dizer não. Tem horas que precisamos dizer sim, no meio de um sorriso maroto, de canto de boca.
 
Tem horas que precisamos esvaziar a garrafa de vinho, encher a boca de palavras de amor. Tem horas que precisamos simplesmente esquecer qual hora é.
 
Tem horas em que precisamos nos olhar por meio de outros olhos e sentir tudo aquilo que guardamos no fundo de uma gaveta distante , trancada a chave.
 
Não me venha falar de prudência quem nunca amou, quem nunca desejou com a alma afogueada. Quem nunca se jogou nua numa banheira de promessas insanas e juras desnorteadas.
 
Tem horas que precisamos ser simplesmente quem somos. Que precisamos sair do banho vestindo apenas a pele da alma.
 
Tem horas que precisamos ser insanos, trazer a alma nos olhos , sangue injetado, pele esfolada.
 
 










Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



 


























 





sábado, 23 de julho de 2016

Me mate com um beijo lento...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Me mate com um beijo lento...morda de leve o meu lábio e injete em minha alma todo o teu veneno. Faça o teu veneno correr por minhas veias, tingindo o meu sangue com tua poesia delicadamente macabra.

Me mate com um beijo lento...cuspa em minha boca as tuas palavras insanas, o teu riso cheio de escárnio. Segure o meu mundo em suas mãos ávidas como quem acaricia brutalmente os seios de uma mulher despudorada. 

Me mate com um beijo lento...devolva às minhas lembranças todas as cores que desbotaram com o tempo. Devolva o cheiro das flores desabrochando nos campos da minha meninice. Devolva-me a mais pueril alegria antes de me matar com um beijo lento...

Me mate com um beijo lento que morrerei apaziguada comigo mesma. Fecharei os olhos como quem fecha portas pesadas sem olhar para trás. Adentrarei em meu bosque particular e lá poderei ser totalmente eu...nua, apenas com a cabeça enfeitada por uma grinalda de flores silvestres. 

E sentirei mais uma vez a nossa conexão plena. Sou totalmente tua e é totalmente meu quando o teu mundo me invade e a mim só resta acolhê-lo e amá-lo e querê-lo com o torpor frenético  de quem despenca de um abismo em câmera lenta. 

Olharei para você mais uma vez...sorrindo...e sem palavras você sentirá o quanto estou agradecida...






Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 


 


























 




terça-feira, 19 de julho de 2016

O amor é o que é

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


O amor é simples assim. Tem gosto de sanduíche de pão com presunto, comido displicentemente , regado a Lambrusco gelado num copo banal de tomar água e Fanta laranja. Comido ao pé da cama , as roupas emboladas no chão, as venezianas fechadas, o mundo lá fora.

O amor é sofisticado assim. Tem gosto de jantar servido à francesa, regado a vinho em taças bonitas. Uma flor a olhar para nós. O brilho tímido de uma vela a iluminar nossos mundos íntimos. Tem gosto de iguaria exótica que degustamos com um pouco de receio antes de nos desmancharmos de prazer.

O amor é divertido assim. Tem gosto de travessura , de molecagem, de imprevisto. Tem jeito de quem pegou o caminho errado e acabou chegando num lugar inusitado, o suor a escorrer pelo pescoço, o rosto afogueado, um riso bobo dançando nos lábios.

O amor é solene assim. Tem gosto de almoço em família. Tem sabor de comida caseira espalhando-se pela boca e pela alma como um abraço apertado.

O amor é o que é. Mil gostos . Uma infusão de nuances variadas. Sentimos seus sabores em tempos diferentes. Primeiro vem o gosto do orégano. Depois o da manteiga e suspiramos brandamente , os olhos quase fechados , a mão a tatear a taça de vinho que nos espera. 




Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 


 

























 


sábado, 16 de julho de 2016

Sobre a fatalidade do amor

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Só pode dizer categoricamente que ama , com olhar fixo, imperturbável, postura ereta e voz firme aquele que já provou do veneno do ser amado.
 
Só pode dizer categoricamente que ama, sem gaguejar , sem pestanejar , sem buscar palavras ,  sem pensar em mas nem poréns , aquele que já vislumbrou o lado obscuro do ser amado, aquele que descortinou as feridas abertas e as fraturas expostas do ser amado.
 
Não existe neste mundo cinza e sem gosto gente que valha realmente a pena conhecer que não tenha pelo menos uma fratura exposta saindo da alma e algumas boas feridas purulentas, ultra sensíveis a um mero olhar.
 
Sim, teu olhar me fere. Me fere de morte , mesmo quando vem transbordante de bondade. Mesmo quando vem com gosto de mel, brigadeiro de colher , bananada caseira com canela. Mesmo quando vem com gosto de eu te amo, te pertenço, não me deixe ou eu morro. Mesmo quando vem com gosto de súplica , de amor eterno, de paixão escrava , escravizante , ternamente brutal ou brutalmente terna.
 
Sim, teu olhar me salva. Me salva de mim mesma: criatura essencialmente solitária , meio louca , despudorada.  Exibo minha nudez cheia de perversa castidade. Ofereço meu corpo a você como quem entrega as mãos cheias de água para um andarilho no deserto.
 
Mato tua sede de desespero no meu corpo insano que ensandece cada vez mais a cada gesto.  Sou teu pedaço amputado. Tua prece, tua blasfêmia. Teu Jardim do Éden, teu inferno. Te levo pelas mãos por caminhos desenhados no seu coração. Transformo em carne e sangue e suor e riso aquilo que para você era apenas delírio, ilusão, febril imaginação.
 
Declamo poesia e filosofia mal digerida durante um banho quente a te olhar matreiramente nos olhos embriagados. Sabemos que não sabemos. Eis a grande graça da existência.  Saber não sabendo. Não existem caminhos fáceis. Sabemos disso. Não existem caminhos fáceis e saber disso simplifica tudo.  Derrama teu vinho em mim e pela primeira vez me pertenço totalmente ao ser tragada por você com a volúpia displicente de quem fuma um cigarro.
 
 
 
 
 





 


 










 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 







 








 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Uma taça de vinho num fim de tarde revelador

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
 
Sinto gosto de vinho espumante no céu da boca quando me deito sobre as nuvens do meu paraíso íntimo e particular.
 
Sinto um leve rubor no rosto quando consigo entrar novamente no meu Jardim do Éden, vestindo apenas as chamas que aquecem meu corpo perplexo de inocente paixão.
 
Sinto uma luz brilhando ao longe quando devolve a mim por meio de um beijo devastador a beleza dos meus anos juvenis , em que tudo era poesia e sonhos de amor se diluindo no ar como bolhas cor-de-rosa de sabão.
 
Sinto um calor morno me abraçando e me tomando quando vejo teus olhos a sorrir para mim. Um brilho doce. Um gosto luminoso. Saio correndo meio tonta pelos labirintos do teu desejo que me envolve com mil braços e mãos macias.
 
Não me pertenço mais...e sorrio mais uma vez. Um sorriso embriagado. Com gosto de meninice e travessura. Com gosto de talvez, quem sabe , por que não?
 
Sinto uma alegria me rasgando por dentro como mil pontas de punhais , fazendo meu sangue jorrar e dançar e rodopiar pelos becos da minha alma.
 
Me deito ao seu lado. Olhos semicerrados. Alma escancarada. O mundo não existe. Todos os horrores ficaram do lado de fora. Me serve uma taça de vinho gelado.
 
 






 


 







 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 





 







segunda-feira, 11 de julho de 2016

Pintura amorosa em cores eróticas

 
Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS


Tradicional sim. Politicamente correta não. Gosto de uma mesa bonita , bem posta. Tomar vinho em taça de vinho. Uma flor a enfeitar a mesa e a sorrir para nós com sua luxúria ingênua. Gosto de tudo que é ingenuamente luxuriante.  Acho que todo ser luxuriante é meio ingênuo pois acredita que pode romper os limites da mesmice com doses cavalares de desenfreado prazer.

Todo devasso é meio casto. Todo devasso tem uma alma intacta no que diz respeito ao conformismo do tédio protocolar.

Tradicional sim. Politicamente correta não. Te agarro com mil braços e pernas , tentáculos de mulher cheia de bálsamo e veneno. Te prendo em meu mundo íntimo e particular com apenas um olhar e tudo de repente começa a se desenrolar em um louco e frenético slow motion.

Tradicional sim. Politicamente correta não. Te beijo com a minha boca cheia de um amor profano. De um amor escandalosamente puro, de olhos e alma estatelada. Não te nego nada. Nem a minha alegria nem a minha tristeza. Nem a minha doçura nem o meu amargor. Nem a minha bondade nem o meu desprezo. Muito menos a minha tragédia. A tragédia...eis a sua parte favorita...a porção que devora de mim com boca mais ávida e olhos mais sedentos.

Gosto de te deixar sem palavras. Gosto de ficar sem palavras. Gosto quando tudo se perde num beijo insano e já não precisamos nem dizer nem ouvir. Nem sentir o que vive além das paredes escuras do nosso quarto imaginário.









 



 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



 











sábado, 9 de julho de 2016

O amor e a morte

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Gosto da instabilidade criativa das coisas que estão no meio. No meio do caminho, no meio de dois extremos, no meio de uma taça , envenenando o vinho com curiosa maledicência.

Gosto dos jogos de nuances das possibilidades múltiplas. Gosto do tremor das coisas que estão entre a dureza das certezas categóricas e ingênuas. Todo categórico é bastante ingênuo.

Gosto de não caber em nenhuma caixinha colorida enfeitada por um tule cor de rosa. Gosto da perplexidade das emoções que dançam diante dos nossos olhos , mas não se deixam capturar.

Gosto de capturar o momento, seu frenesi, seu gosto que sorri entre a uva e o vinho. Gosto do furta cor que pode correr ou deslizar para o lado que bem entender , ao sabor da sua vontade.

Gosto da inconsistência das meias certezas, das verdades fragmentadas. Me sinto firme onde a terra se move, onde sinto que posso cair , mas que sempre haverá uma mão sensível para me segurar.

Gosto da delicadeza da relatividade. Gosto da delicadeza daqueles que conduzem e se deixam conduzir num afetuoso jogo de amor.

Gosto da sabedoria melancólica e frágil daqueles que sabem que nada podem. Gosto do teu sorriso de fracasso e ofereço meus lábios com gosto de tempo perdido. Desperdício...o mais trêmulo tema para uma poesia. Sabemos que o jogo está perdido. Sempre esteve, antes de nós mesmos , antes das primeiras palavras formarem o primeiro verso, o primeiro grito, o primeiro gemido. Gemo.

Descobre suas verdades mergulhando em minhas incertezas. E eu as cubro mais uma vez com novas dúvidas. As que vejo em teus olhos. Nos olhos que carregam o mesmo gosto de tempo perdido que possuo em meus lábios.

Cada momento forte é uma morte. Cada vez que te vejo...mal toco tuas mãos com as minhas e um minuto já se foi...um minuto a menos...um minuto mais perto da nossa morte...da morte do nosso enlaçar...a morte do nosso encontro inevitável e caótico. Acaso. Destino. Pouco importa.





 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 












quinta-feira, 7 de julho de 2016

Estes seios tão meus...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Assistindo ao filme "A garota dinamarquesa" , senti em minhas próprias carnes o horror que deve ser carregar um corpo que não nos pertence. Imaginei-me com um pênis e enchi-me de repulsa e constrangimento. 
 
Lembrei-me de mim mesma , nua no banheiro, o vapor do banho quente invadindo as paredes , maculando o espelho e os meus olhos hipnotizados por meus próprios seios , felizes por aquelas duas massas redondas de carne branquinha pertencerem a mim. Mais do que isso: serem uma extensão e um reflexo da minha própria alma histericamente feminina.
 
Levanto os braços para segurar os cabelos e olho para mim mesma. Os seios suspensos, atrevidos , cheios de si, cheios da petulância típica daqueles que estão e sempre estiveram onde deveriam estar.
 
Sim, meus seios  são eu mesma. Meu corpo não é um estranho para mim como o corpo do pintor Ernie Wegener era para ele.
 
Em uma cena tocante , ele completamente nu diante do espelho, esconde o pênis entre as pernas. Normalmente  no cinema e na literatura , quando um personagem se olha diante de um espelho, enxerga muito mais do que o próprio corpo. 
 
Ernie quer se livrar daquele corpo que é uma aberração. Aquele corpo é um estranho para ele. Uma deformidade que deve ser extirpada para que todos possam ver o que para ele já era óbvio. Na verdade , o que para ela já era óbvio.  Muito antes de extirpar o pênis , Ernie já era Lili.  Muito mais feminina do que muitas mulheres. Talvez antes mesmo da cirurgia , ela já fosse mais mulher do que muitas pessoas que possuem um genital feminino.
 
O médico construiu uma vagina física, mas Lili já possuía a sua vagina emocional. Uma vagina que escapava do seu olhar doce , dos gestos fluidos e timidamente coquetes, da beleza comovente com que erguia a cabeça lentamente, como se diante dela houvesse todo um mundo de possibilidades múltiplas e mágicas a serem descobertas, desnudadas , devassadas por sua feminilidade pungente.
 
No final do filme , Lili diz se sentir inteira...quantas pessoas podem dizer tal frase com total convicção? Quantos de nós somos realmente inteiros? Quantos de nós somos realmente nós mesmos?
 
 

 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 









 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

O que as pessoas tem contra a melancolia?

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O que as pessoas tem contra a melancolia? Eis a pergunta que não quer calar. Eis a pergunta que ressoa em minha mente , dançando por entre meus pensamentos , os enredando, os chamando para mais um minuto de amor e sofreguidão, envolta em finas rendas negras , beijando no rosto quem passa, com seu batom úmido e vermelho. 

O que as pessoas tem contra a melancolia? Por que não conseguem ver que ela é bonita? É moça de pele aveludada , mãos macias, cabelos negros a ocultar os olhos profundos e brilhantes. É moça com ares góticos , um sorriso meio sexy , meio desesperado que se apaga ao tocar os lábios num fruto envenenado. 

A melancolia é moça que carrega o veneno na alma. Um beijo seu pode ser fatal...sim, pode matar a imbecilidade das criaturas parvas , destinadas à animalidade das coisas comuns.

O que as pessoas tem contra a melancolia? Ela não é exatamente triste...ou é ...mas de um jeito meio alegre. Sim, a melancolia regojiza-se. É ela quem nos faz provar os mais eufóricos prazeres. É ela que nos rasga com sublimes poesias , fazendo os olhos sorrirem antes dos lábios. É ela que nos proporciona os mais ferozes orgasmos da alma. É ela que nos fazer ver , ouvir e sentir o que para os outros é uma banal paisagem.

Sim, ela transforma o vinho em combustível da alma. A comida , na boca da pessoa amada. A quentura de um banho, no verso erótico de um poema proibido. Um simples por do sol numa melodiosa rima da vida...e sorrimos...sorrimos...sorrimos ...em círculos sob o olhar incauto de alguém que viu o filme , mas saiu da sala de projeção sem entender o final. 

 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 









terça-feira, 5 de julho de 2016

Mulher poesia

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
 
Sou escritora. Sempre fui. Acho que sou escritora antes de ser eu mesma. Talvez não haja de fato um eu mesma fora dos limites da minha pena.

 
Talvez não haja um eu mesma fora dos limites trêmulos e vigorosamente hesitantes e vagos das palavras.
 
 
Talvez as palavras sejam a minha matéria-prima. Talvez as palavras estejam para mim como a celulose para o papel, a gordura para o sabão.
 
Talvez as palavras estejam comigo como o vento e a tempestade. Talvez as palavras me antecedam e me anunciem como o vento antecede e anuncia a tempestade.
 
Talvez as palavras me antecedam e me anunciem como o cheiro adocicado do mar em ressaca.
 
Talvez as palavras me antecedam e me anunciem como o primeiro enrubescer de face diante da descoberta do amor.
 
Talvez as palavras sejam para mim como um sorriso de amor, prenúncio de toda a desgraçada alegria com seus infinitos abismos.
 
Talvez as palavras sejam os precipícios de onde despenco todos os dias com o destemor típico dos ingênuos.  Os precipícios da alma por onde vagam aqueles que só sabem sonhar. Aqueles que são mais ar do que terra, mais pensamento do que carne e osso, mais poesia do que sangue, mais lembrança do que existência.
 
Talvez eu seja o verso derradeiro de uma poesia qualquer. Um verso negligenciado num livro antigo, enlaçado pela poeira e pelo tempo e pelo esquecimento.
 
Talvez eu seja uma simples e tímida rima à procura de olhos famintos que me declamem com rubor na face, com o mesmo rubor dos amantes que se deliciam diante de todos os abismos que os cercam, diante de todas as marés furiosas que banham suas almas.
 
Talvez um dia me desconstrua em letras...letras que nada significam, que em nada tocam a pele , que nada podem fazer , que nada podem tremer , enrubescer. Que nada podem transbordar. Talvez as palavras sejam o meu pó.
 
 

 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A vida e a morte num orgasmo fumegante

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Descobri que talvez os vinhos que aprecio não sejam assim tão baratos. Mas não chegam a ser caros. São assim como eu, habitantes de uma terra , de uma zona intermediária entre tudo aquilo que existe de mais gritante e devasso e tudo aquilo que existe de mais pudico e suave.
 
Mas em outros momentos, penso que sou mais suave quando sou devassa e não pudica. Existe uma aspereza essencial em todo caráter profundamente pudico. Existe uma aspereza essencial  em todo caráter profundamente devasso.
 
Te olho com olhos febris enquanto encolho meu corpo, defendendo-o da maledicência de teu olhar. Olho-te inocentemente , lábios levemente entreabertos enquanto te ofereço meu corpo nu sem ressalvas.
 
A morte deve ter a quentura de um banho de ofurô. Fecho os olhos. Comprimo os lábios e contorço o rosto numa careta ridícula. A morte deve ter o gosto de um gemido diluído na água quente, no movimento obsessivo dos pés empurrando as bordas da banheira. Empurramos exatamente o quê? Sorrio com os ares tolos dos supostamente felizes. Sorrio pois não consigo fazer nada além de sorrir.
 
Sim, sou como este vinho intermediário. Nem barato nem caro. Nem elegante nem vulgar. Nem virtuosa nem perdida. Nem perplexa nem totalmente convicta das profanações da vida. E continuo a sorrir entre o preto e o branco, fundindo-me em todas as nuances da vida, sem saber para onde rolar o corpo nu e trêmulo de ardor.
 
 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.