Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
Um dia desses estava me lembrando que no tempo que recebi um salário melhor , foi justamente a época em que senti mais fome. Fome de tudo: de comida mesmo. De afeto. De boas conversas.
Neste tempo, uma vez, fui falar de um livro que estava lendo e olharam para mim como se eu estivesse drogada. E olhem que eu não estava citando Proust ou Joyce. Eu estava falando de Richard Yates e do seu romance "Revolutionary road". Um romance bastante profundo. Mas de fácil intelecção. Se bem, que parando para pensar, "Revolutionary road" devia ser um dos últimos livros para se comentar naquele ambiente cheio de preocupações relevantes como massagens redutoras de medidas e sapatos da moda.
"Revolutionary road" é justamente sobre esta vidinha de merda que a maioria das pessoas aceita numa boa como se fosse o supra sumo, a última Coca Zero gelada no deserto, acompanhada por duas rodelinhas de limão siciliano. Fico entre o choro sincero e um riso de escárnio.
Sim, foi um tempo estranho. Eu tinha dinheiro para comer em restaurantes legais , mas não havia companhia para fazer isso. Eu tinha dinheiro para comprar lingeries bonitas e comprava...mas nem sexo eu fazia. Não tinha ninguém para olhar as minhas calcinhas...se bem que homens normalmente não as olham. Passamos cinco minutos para escolher a calcinha perfeita e a pobre coitada mal tem tempo de dizer um olá para o sujeito. Já sai voando como embrulho de presente para criança.
Sim, foi um tempo estranho. Tinha um cargo com nome pomposo, mas nunca me senti tão operária comendo meu pão com queijo e presunto frio na copa do escritório. Havia quem me considerasse fresca , mas não curto arroz com baratinha do mato nem feijão com aspecto de barro. Sim, preferia o pão com queijo e presunto que trazia de casa: simples, monótono, mas limpo e digno. Almocei um lanche assim por uns cinco meses.
Sim, foi um tempo estranho. Foi quando percebi que a estranha era eu. Que aquele mundo de amabilidades e gentilezas , de conversas densas sobre arte e sobre a vida, aquele mundo de pessoas intensas e interessantes não era o mundo de verdade. Era o meu mundo. Era o mundo o qual estava habituada. Era de onde tinha vindo.
No mundo real, ser gentil era ser falso. E querer comer comida limpa era luxo. E gostar de livros é papo de louco. E andar de sapatos baixos , o fim da picada.
Sim, quanto mais mergulhamos dentro de nós e quanto mais bebemos do vinho do conhecimento e quanto mais nos enredamos nas teias das delicadezas , mais loucos e bizarros começamos a aparentar para o mundo brutalizado.
Estes meses de fome , de solidão, mastigando meu sanduíche sozinha, com lágrimas querendo se precipitar, realizando tarefas que não faziam sentido , sendo cada vez mais desprezada quanto mais tentava agradar, talvez tenham sido os meses mais didáticos de toda a minha vida. Foi um curso intensivo de realidade. Me adequei? Muito pelo contrário. Me desadequei ainda mais. Me desadequei com conhecimento de causa.
Se os cursos de arte com seus professores e colegas instigantes me fizeram ver o que eu queria ou imaginava querer, este tempo me fez ver tudo aquilo que eu não queria. Sim, de certa forma , eu não me conhecia antes desta temporada friorenta. Eu não tinha a mim mesma. E hoje , diante da menor das delicadezas , diante do menor gesto que exala calor e carinho, sinto-me profundamente grata , pois agora sei que este belo mundo colorido, cheirando a canela e a outras especiarias é um milagre que brota de um descuido deste mundo de pedra.
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.