sábado, 19 de novembro de 2016

Amor cotidiano tem gosto de comida esquentada no micro-ondas

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Os poetas falam sobre o amor ideal. Beijos interrompidos em noites de chuva imaginária. Violinos tocando ao pé da alma , um desejo urgente de ficar , manter os dedos entrelaçados , as almas em comunhão.

Uma necessidade cruel de partir . Entrar no vagão do metrô, dar uma última olhada melancólica para trás. Abandonar-se num banco vazio e suspirar diante das lembranças tépidas de tudo aquilo que não aconteceu.

Os filósofos tentam decifrar o amor , racionalizá-lo, arrancar a sua seiva , a sua essência , jogá-lo na mesa com outros nobres conceitos sem a quentura branda da cama dos amantes.

Os psicanalistas sorriem um sorriso de canto de boca quando falam sobre o amor...

Sim, o amor parece ideal quando não se pode ficar junto. Altos e nobres valores. Juras insanas. Em tom de prece , falamos a nós mesmos sobre a sacralidade daquele sentimento que corroí o peito como ratinhos travessos.

Mas o amor é cotidiano e banal. O amor tem gosto de comida esquentada no micro-ondas , louça suja sobre a pia. Um lava e o outro enxuga.

O amor tem gosto de café tomado às pressas, entre bocejos. Tem textura de lençol amarfanhado depois de uma noite compartilhada cheia de sono e um carinho profundo. Tem gosto de sexo meio lúdico. Ai, amor, aí eu sinto cócegas!

Tem gosto de contas a pagar se acumulando na mesinha de cabeceira. Tem gosto de geladeira vazia. Vamos ao supermercado, amor?

No início, somos intelectuais , profundos, cheios de frases de efeito, olhares enviesados , sorrisos de canto de boca. Diz-se algo niilista e depois um gole breve no copo da cerveja. O outro suspira. Falamos sobre autores famosos , todos os filmes cult que vimos , até citamos algum pensamento literalmente....que memória! Mais um gole na cerveja ou no vinho. Mais um suspiro. Lontras se exibindo. Melhores perfumes , a roupa que cai mais ajeitada.

Depois , o amor vira passar a tarde vendo série americana dublada. É , não basta passar a tarde vendo série...é preciso vê-la dublada pois a gente quer ver deitado e fica mais simples ouvir do que ler e de repente a gente cai no sono e respira de boca aberta porque comeu muito Yakosoba e bebeu muito frisante sem gás no almoço.  O rolinho primavera também estava meio gorduroso e a gente levantou cedo e a gente deixou o outro ver que lá no fundo a gente é operário.  Me passa mais um pouco do molho agridoce, amor?

A gente ganha peso, usa calcinha de algodão...peraí...ainda não cheguei nesta fase. A gente sente vontade de ver  um bom terror adolescente comendo batatinha frita sabor creme de alho sobre os lençóis amarfanhados da noite passada. 

A gente assume que é meio bobo, que lá no fundo a gente acredita sim no amor. E que é bom ficar junto, que é bom simplesmente ficar deitado vendo alguma coisa qualquer. A louça se acumulando sobre a pia. Uma hora a gente sabe que vai até a cozinha e resolve este problema junto. Amor, faltou lavar aquele prato.

 

 
Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 










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