sexta-feira, 16 de março de 2018

Quando eu descobri que era gato e não cachorro

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Não. Não foi num dia específico que descobri que era gato e não cachorro. Foi numa fase. Algo difuso como as mamas vistas por meio de um ultrassom. 

Não foi de repente , estilo um susto que a gente leva , um insight , um salto no escuro, um sexo brutal com as saias levantadas e as calcinhas abaixadas: "Nossa! Já acabou?" pronunciado no meio de um sorriso de canto de boca , meio sarcástico, meio perverso. Meio querendo algo inteiro.

Não. Foi estilo aquela carícia morna e boba descendo do pescoço até o cóccix. Estilo aquela risada que vai se intensificando quando nos embriagamos com poesia e desatino. Sim, sou um gato. Aos poucos , fui percebendo que tinha unhas afiadas e um jeito manhoso de amar. Posso querer você e te repelir em doses quase idênticas. Gosto da tranquilidade dos dias iguais. Prezo rotinas. Prezo que me prenda com mãos brandas. Mas preciso das laterais para caminhar sozinha , no meu ritmo. Tenho uma canção francesa e melancólica tocando em meu coração.

Se te unho de leve quando tenta reter-me em seus braços , não é por falta de amor. Lá no fundo , tenho muito medo de qualquer coisa. De prender a respiração, de perder aquilo que acho mais caro em mim.  Talvez , das cócegas nos bares escuros da cidade, talvez das lembranças ternas entre os lençóis amarfanhados. 

Sim, sou gato quando me afasto para não te morder e apenas te firo com meu tédio lânguido. Quando amo a mim como amo a você. 



































































































Sílvia Marques é professora doutora , escritora, atriz e psicanalista lacaniana. Escreve na Obvious e Fãs da Psicanálise, idealizadora da pós em Cinema do Complexo FMU. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

www.psicanalistasilviamarques.com

terça-feira, 13 de março de 2018

Carta de despedida à minha analista

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS



A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando precisamos mais de uma sessão de cinema do que deitar no divã. Quando o bocejo do analista deixa de nos ferir, pois a gente se toca de que as nossas dores são como tapioca recheada com Nutella. Saborosas, mais banais. 

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando tomar uma cerveja com os amigos deixa de ser evento marcado com um mês de antecedência e passa a ser rotina. Quando podemos ficar lado a lado sem dizer nada. Quando respeitamos o afastamento do outro ou quando somos nós a nos afastar. Algumas coisas devem ser deixadas de lado mesmo, colocadas na sacola de roupas usadas para doar. 

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando sentimos que nem tudo o que os outros dizem é para nos ferir.  E mesmo quando é, a tristeza pelas palavras atravessadas se torna página virada em nosso folhetim na esquina seguinte.

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando desistimos de ensinar para quem não quer aprender. Quando a gente percebe que o outro ainda não está pronto para abrir mão do próprio sofrimento. Que algumas cicatrizes na pele da alma são inevitáveis e incuráveis, mas sem elas não seríamos nós mesmos. Quando a gente pode falar do passado sem mágoas nem medo. 

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando o sexo não precisa ser tão louco para ser gostoso. Que a gente quer escolher a posição mais confortável e deixar fluir. Que D.R só em último caso e que rir da gente mesmo é bem mais divertido do que zombar dos outros.

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando paramos de dar corda para a neurose alheia e perdemos a vontade de reclamar de tudo a todo momento. Quando passamos a nos colocar em primeiro lugar , mas entendemos que o mundo não rebola com seus sete véus  ao redor do nosso lindo umbiguinho. 

A gente percebe que a psicanálise chegou num ponto bem elevado quando o sentido das coisas deixa de ser pergunta importante. Quando a gente olha para o caos com olhos de quem vê uma obra de arte.
















































































Sílvia Marques é professora doutora , escritora, atriz e psicanalista lacaniana. Escreve na Obvious e Fãs da Psicanálise, idealizadora da pós em Cinema do Complexo FMU. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

www.psicanalistasilviamarques.com