sexta-feira, 29 de abril de 2016

Uma singela homenagem ao inverno...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

 Frio mais uma vez. Frio de novo. Frio finalmente. Depois de tanto tempo, frio. Corro para o chuveiro e deixo o jato quente cair sobre a pele da minha alma que sorri languidamente. Que sorri feliz.

Vontade de chocolate quente. O achocolatado acabou. Sem problemas. Improviso com calda de chocolate para sorvete. Um pouco doce demais. Sem problemas. Jogo um pouco de canela em pó. Aspiro o cheiro. Mais um pouco. Só mais um pouco.

Chocolate quente com canela , pão com queijo. Filminho na TV. Cobertor enrolado nas pernas, me pegando de jeito. Um livro antigo me olha sedutor à minha espera.  Quero relaxar e fazer tudo ao mesmo tempo. Minha alma sorri languidamente mais uma vez. Sorri feliz, meio infantilizada de tanto e tão despudorado prazer.

Olho pela janela e o tempo cinzento me enlaça, me abraça com seus mil braços gentis.  E pela rua , saio saltitante, sem transpirar , sem chorar por dentro, sem reclamar.  Boina na cabeça, o cérebro fervilhando , vontade de ser cinco ou seis só para aproveitar todas as possibilidades.  Não quero perder nada.  O vento balança os cabelos, a saia rodada por cima das meias grossas. Quero rir sozinha. Minha alma sorri que nem boba. Minha alma sorri languidamente pela enésima vez. Nove mil vezes mais feliz.

Olho pela janela que desemboca no pátio interno da minha alma.  Vejo os galhos secos cobertos de neve e sorrio , sorrio, sorrio até rodopiar, até desfalecer de estranho prazer. Até florescer.





 
 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

Felicidade...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Esta semana li uma citação maravilhosa de Schopenhauer.

"A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê".

Sim, concordo com estas palavras. A grande sacada é extrair do aparentemente óbvio e comezinho , algo inusitado.

É analisar uma velha questão sob uma nova perspectiva. É captar algum detalhe que passou batido para a maioria das pessoas.  É ver oportunidade onde todos veem crise ou ver crise onde todos veem oportunidade.

Porém, ter um olhar inusitado sobre a vida é uma faca de dois gumes. Se por um lado, nos coloca em uma posição privilegiada em algumas situações, pode ser a fonte de muitos dissabores e angústias.

Ter um olhar mais sensível e perspicaz a respeito da realidade,  nos conduz às melhores alegrias da vida, mas também às mais dilacerantes tristezas.

Normalmente , o que as pessoas querem? Um bom emprego que permita que as contas sejam pagas no final do mês. Um relacionamento amoroso para mostrar à sociedade que tem um parceiro/parceira. Posses que garantam status como carro do ano, um smartphone que faça a limpeza do apartamento e diga boa noite, uma casa grande , um outro imóvel em alguma cidade de montanhas ou na praia ( depende do gosto de cada um) Tem gente que quer os dois, mesmo que não frequente assiduamente nenhum.

Enfim, a maioria quer uma vida estilo selfie. O importante é aparentar prosperidade, felicidade, realização. Se eu ganho bem no meu emprego, sou bem sucedido. Será mesmo?  Se eu tenho um parceiro amoroso , eu amo e sou amado. Será mesmo? Se eu tenho o carro do ano, o smartphone multiuso, um apê na praia , um chalé nas montanhas, eu sou alguém que deu certo na vida. Será mesmo?

Não estou criticando quem tem o carro do ano e mora numa boa casa etc etc etc o que quero simplesmente dizer é que a felicidade de uma pessoa não se encaixa numa pesquisa do IBGE. O buraco é muito mais embaixo. As feridas são muito mais profundas e delicadas.

Ter uma boa situação financeira nos ajuda sim a superar crises e maus momentos, nos proporciona conforto e facilidades muito prazerosas ( tal fato é inegável. Sofrer dentro de uma hidromassagem em Campos do Jordão é melhor do que dentro de um busão lotado) mas não nos garante uma vida feliz. Até mesmo porque a felicidade nunca vem de fora.

 Ela pode ser estimulada por elementos externos ( posses, relacionamentos , oportunidades profissionais , viagens , estudos  etc) mas ela cai por terra se não encontrarmos forças e um equilíbrio maior dentro de nós mesmos. Caso contrário, não teria tanta gente com cara deprimida em hotéis e restaurantes de luxo e tanta gente rindo em barzinhos meia boca. 

Caso contrário, não teria tanta gente solteira viajando, curtindo com os amigos, passeando, aprendendo, estudando, se desenvolvendo enquanto muita gente acompanhada fica estagnada, não cresce em nada , para no tempo e no espaço.

Caso contrário, não teria tanta gente antissocial e solitária vivendo em grandes casas enquanto muita gente recebe super bem os amigos em um quarto e sala.

Também não quero dizer que todo pobre é bem humorado e feliz. Tem muito pobre fazendo cara feia o tempo todo...aí, o bicho pega. Em suma...a vida é complexa! E por mais que eu sinta o quanto é complicado ver as coisas de um jeito diferente, se pudesse reverter esta situação, não aceitaria.

Quem prova do vinho, raramente volta a se saciar com groselha...bem, eu explico esta piadinha  em um outro post.


 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sobre fazer o próprio caminho...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
 
 
Estar no lugar certo talvez seja uma das coisas mais complexas nesta vida. Por uma série de circunstâncias e obrigações sociais, associada a limitações de diversas naturezas, acabamos sentando no lugar desocupado, na cadeira que sobrou.  Sim, e muitas vezes esta cadeirinha restante costuma ser bem desconfortável...
 
Acabamos namorando que está disponível e nos chama para sair. Soou meio deprimente? Também acho.
 
Acabamos aceitando um emprego de merda   precisamos pagar as contas no fim do mês. Acabamos assistindo à peça teatral X porque os ingressos da Y estão esgotados. Acabamos viajando para a praia porque temos amigos para nos hospedar e é mais perto. Acabamos alugando o apartamento que cabe no nosso orçamento ou que está mais próximo de uma estação do metrô.  Sim, estar perto do metrô para quem não dirige faz muita diferença. Uma das minhas ambições menos glamorosas...
 
 
Enfim, a vida acaba se revertendo numa série de conformismos e ajustes que aceitamos para sobreviver. De ajustes que fazemos para pagar as contas,  para nos distrair no feriado , para não morrermos de solidão.
 
 
Em muitos casos , não há muito mesmo o que fazer: não dá para esperar pelo emprego dos sonhos enquanto as contas continuam chegando. Não dá para morar debaixo do viaduto porque o apartamento que realmente queremos é caro ou já foi alugado por outra pessoa.
 
 
Mas, em alguns casos, é possível se recusar a sentar na cadeira desocupada sim. E como é bom quando isso acontece. Como é bom poder mandar para PQP aquela bosta de "oportunidade" que te oferecem como migalha. 
 
 Em alguns casos,  é  possível sim virar a mesa ou se preparar estrategicamente para virá-la. Nem sempre é possível reverter uma situação desagradável do dia para a noite. Porém, com uma boa dose de perseverança , estratégia e calma, podemos tornar os dados mais favoráveis ou menos desfavoráveis. Sim, caros leitores...como se diz...tem o dia da caça e o dia do caçador.
 
 
Se nem sempre é possível dizer não a um emprego chato, podemos nos organizar para conseguir algo melhor. Se nem sempre podemos morar onde queremos, é possível sim nos prepararmos pra viver em um lugar que combine mais com as nossas aspirações. Se não é possível namorar quem desejamos, ainda nos resta a possibilidade de não namorar e esperar por uma oportunidade melhor. Acreditem em mim: namorar por namorar pode ser a pior das solidões.
 
 
A rotina e a rigidez do status quo nos empurram para caminhos que não queremos, nos induzindo a fazer escolhas que não são nossas. Muitas vezes, fazemos ou deixamos de fazer algo para agradar á opinião pública, para agradar quem está ao nosso redor, desconsiderando a pessoa mais central da nossa vida: nós mesmos.
 
 
Para obter a aceitação alheia e/ou evitar dores de cabeça, aceitamos pacificamente abrir mão de muitas coisas que tornariam a nossa existência mais rica e significativa. Quantos sonhos ou pequenos desejos não sacrificamos por motivos que não dizem respeito à nossa mais profunda subjetividade?
 
 
Quantos projetos ultra pessoais não engavetamos? Quantos lugares não deixamos de visitar porque quem estava ao nosso redor preferiu ir a outros? Quantos livros não deixamos de ler porque estávamos muito ocupados lendo coisas que nos impuseram? Quantas vezes não deixamos o amor passar por medo de receber um não ou parecer ridículo? Quantas flores as pessoas não deixam de dar e receber por medo de parecerem piegas? Quantos amantes em potencial não dormem em camas separadas porque já se acostumaram a ser sozinhos, porque já se acostumaram a ser tristes?
 
 
Sim, reciclar a própria vida, ressignificando-a , talvez seja uma das tarefas mais penosas e ao mesmo tempo necessárias. Buscar nas brechas do cotidiano um pouco de poesia, um pouco de melodia que as outras pessoas não podem ouvir é a distância que existe entre uma vida banal e uma vida especial.
 
 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



sexta-feira, 22 de abril de 2016

Amor

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
Nunca entendi e nem quis entender esta história de deixar o amor para depois, dentro do micro-ondas para ser aquecido em um noite fria qualquer ou no fundo de uma gaveta mofando com o tempo.
 
Nunca entendi nem quis entender esta história de deixar o amor para lá por estar ocupada demais. Nunca entendi quem vira as costas para o amor e o deixa falando sozinho na sala.
 
Nunca entendi nem quis entender esta história de abandonar o amor sozinho, passando frio na cama.
 
Sempre cheguei três milênios antes dos encontros que marquei com o amor. Sempre cheguei com os pés descalços , as mãos desarmadas, o rosto lavado e levado, um leve rubor na face.
 
Sempre cheguei com aquele ar de desamparo. De quem não tem para onde fugir. E nem quer. Não, nunca quis fugir do amor. Mesmo quando eu achava que queria. Nunca pude encontrar a porta de saída.
 
Sempre lancei um olhar a mais para o amor. Um olhar se rompendo como uma renda muito fina, se rompendo como as carnes que estremecem,que fremem e tremem. Como a alma que se rasga, como a alma que se despetala de euforia, de desesperada alegria.
 
Saio nua pela noite , debaixo de uma chuva morna de carícias e bebo do teu vinho proibido. Não temo mais nada. Me guio pelo cheiro da tua pele.  Estou totalmente rendida e como a mesma renda fina que se parte quando te vejo , meus olhos se desfazem.
 
A chuva continua a molhar a minha pele e já não sei de mais nada...não sei...não sei... esqueci tudo que sabia...não quero saber. Sorrio sentindo teu gosto ainda em mim.
 
 
 

 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Bela, desbocada e do bar...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
A capa da revista Veja que apresenta a legenda "Bela, recatada e "do lar" , referindo-se à esposa do vice-presidente da República, gerou uma série de piadas nas redes sociais.
 
Entre as piadas, uma que me deliciou profundamente foi a apresentada num post em que uma mulher da Antiguidade segura um copo ( supostamente com alguma bebida alcoólica) e há os seguintes dizeres: "Bela, desbocada e do bar".
 
Outro post brincalhão e irônico disse que mulher precisava ser discreta.
 
Fiquei entre gargalhar e vomitar. Como o meu estômago anda bom , acabei gargalhando sozinha, às vezes internamente, para mim mesma. Em outros momentos, ri  para valer,  para não chorar.
 
Quem elabora as matérias e capas da revista Veja? A reencarnação de algum membro da Santa inquisição? A quem esta revista se dirige? A gente mal amada e mal comida que se irrita com simples insinuações sexuais? A gente que se esconde atrás de Deus para disfarçar as nojeiras que pratica?  A gente que fala em nome da família brasileira, mas que tem amante?
 
Sim, meu caro leitor conservador. Defender a família tradicional brasileira é defender a maltratada mas necessária figura da amante. Família tradicional que se preze precisa de uma amante para manter o equilíbrio da hipocrisia.
 
Filho gay , nem pensar! Mas amante discreta pode. Esposa discreta deve. Passar pelo porteiro e pela faxineira sem cumprimentar faz parte ,contanto que se diga sempre "Graças a Deus".
 
A que família brasileira os deputados se referiram na votação de domingo??????? À família formada por um casal heterossexual com filhos biológicos?
 
E que merda é esta de recatada e do lar? Por acaso , as mulheres que trabalham fora e ainda cuidam da casa ao chegarem exaustas do emprego não são do lar?  Por acaso , a idoneidade de uma mulher se mede pela saia nos joelhos. Não devemos nos esquecer que tanto saias curtas quanto no joelho podem ser levantadas a qualquer momento.
 
Vestir uma saia na altura dos joelhos é salvo conduto para se fazer qualquer outra coisa acima de qualquer suspeita?
 
Fala-se ainda em recato em pleno século 21? O que seria recato sob o viés de quem escreveu a matéria? Usar decotes altos, batom nude e não mostrar os dentes para sorrir?
 
Ninguém precisa andar semi nu pela rua , mas julgar uma pessoa pelo estilo de roupa é o fim da picada...tem gente que usa cores e modelos discretos porque os acha mais elegantes...apenas isso! Roupa bege e batom cor de boca não são provas cabais de uma conduta recatada.
 
Não, caro leitor conservador. Mulher não precisa ser recatada nem discreta. Mulher precisa ser valorizada . Precisa se expressar . Precisa ser feliz dentro de um vestidinho elegante bege ou dentro de uma mini saia preta. Mulher precisa ser ela mesma com batom nude ou vermelho. Ou ainda sem batom algum. Mulher precisa ser querida independente do seu temperamento. Independente de ela posar para uma foto com braços delicadamente cruzados na frente do peito ou erguidos para o alto. Mulher precisa dizer o que pensa, sorrir e rir à vontade , ter prazer,  trabalhar , dentro e fora de casa , tomar sua cerveja no bar ou o seu champanhe gelado onde ela bem entender.
 
 


 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






terça-feira, 19 de abril de 2016

A cidade mora em mim

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Talvez, uma das sensações mais prosaicamente prazerosas é comprar um livro numa banca de jornal e sair pela rua , sentindo o contato da sacolinha plástica enquanto se aspira o cheiro de cigarro de alguém que passa, enquanto se lembra do gosto do pastel comido uma hora antes , ao redor de uma mesinha qualquer disposta de forma improvisada na calçada suja. 

Talvez , uma das sensações mais prosaicamente prazerosas, seja chegar em casa, depois de ter se misturado a todas as nuances da cidade, entre o cheiro engordurado de comida, restos de suor escamoteados por perfumes baratos e de vez em quando um realmente agradável. Cheiro de bom ar no táxi. O calor da própria pele. 

E ao chegar em casa, o prazer de retirar o livro da sacolinha plástica e iniciar a leitura depois de um bom banho e uma taça de vinho gelado, com a memória viscosa dos odores da cidade.

A cada página virada , a cada citação que nos faz parar para pensar durante toda uma vida, a cada gole de vinho entre um espanto e um espasmo, a vida interior vai ganhando mais cores e gritos do aquela ocorrida lá fora , entre as buzinas e os transeuntes que falam, fumam e gesticulam.

Talvez, não haja sensação mais prosaicamente e profundamente prazerosa do que trazer para dentro de casa resquícios do mundo de fora, traços da cidade, adaptá-los à nossa realidade, subjetiva e fragmentada.

Me comove pensar que o livro que apoio em meu peito , extenuada pela leitura, esteve há poucas horas numa prateleira qualquer como um volume indigente. Me comove ver sobre a mesa da cozinha , junto com os utensílios domésticos, a familiar garrafa térmica , a bandejinha de isopor com dois sonhos ou alguns bem casados comprados numa padaria do bairro, depois de enfrentar uma boa fila no caixa. 

Sinto tais objetos , como que resgatados do anonimato e da indiferença, para o seio grande e afetuoso da minha casa.

Ás vezes, me sinto eu mesma este seio que aconchega no meu âmago tudo aquilo que vou trazendo dos quatro cantos...guloseimas, livros seminais em edições de bolso, dvds jogados em gôndulas como roupas de quinta categoria, sorrisos, meias palavras, afetos esgarçados , memórias quase amareladas, promessas de uma outra vida.





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 







sábado, 16 de abril de 2016

O que não cabe em nenhuma palavra

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Voltando numa noite de sexta para casa. O vento batendo no meu rosto.  Uma felicidade que não podia ser explicada com palavras...soou clichê?
 
Concordo. Mais clichê lugar comum frase pronta do que vento batendo no rosto enquanto a gente se sente escandalosamente feliz não existe neste mundão de meu Deus, que em alguns momentos, se parece mais um mundinho, uma grande vilazinha onde todo mundo fuxica, mas ninguém realmente sabe , muito menos sente, o que se passa com a gente.
 
Mas voltando ao vento e à felicidade que não cabe em palavras, voltando ao clichê lugar comum frase pronta ( odeio e cultuo mesmices quase que na mesma proporção, numa atitude esquizofrênica) muitas vezes o melhor e mais pleno não pode ser transcrito num poema. E quando a gente tenta pôr tudo num papel, por mais bonito e poético que fique, sempre falta uma palavra , uma vírgula, reticências...
 
Aí, a gente pensa: esqueci esta tal palavra no metrô ou no táxi? Ou ela voou pelo vento, misturando-se na noite arredia enquanto fechei os olhos e senti os cabelos acariciando o meu rosto dançando ao sabor da brisa? Que brisa...sorrio sozinha, para mim mesma, desconstruindo velhos poemas em minha mente, em busca da palavra perfeita.
 
Será que esta palavra realmente existe ou é impressão minha? Sensação vaga de quem se embriagou de alegria e cismou que esqueceu um resto de poesia dentro de uma bolsa qualquer?
 
Será que posso encontra-la entre os lençóis amarfanhados da minha cama solitária? Será que posso esbarrar com ela por acaso se levantar no meio da noite sem acender as luzes do quarto?
 
Será que ela se esconde no fundo do meu copo de vinho? Daquele copo que deixei pela metade na mesa do bar onde estávamos? Mentira...nunca deixo copos pela metade...não suporto ambiguidades ou meios termos...tomo tudo e deixo depois que um sentimento qualquer me tome  e me leve para terras distantes.
 
Saio do táxi, entro em casa. Procuro a chave na bolsa. Demoro a acha-la. Nada da tal palavra.
 
Me frustra perceber que nem sempre existe a tal palavra. Como poeta quero transformar o mundo em um soneto...soneto não...em uma poesia de versos livres...livro-me de tal busca...pelo menos até o dia seguinte.
 
 

 
 
 
 
 


 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






sexta-feira, 15 de abril de 2016

Dois corpos perdidos na multidão do descaso

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

 Que a realidade nunca nos faça ver que as lanterninhas de papel de Blanche Dubois são apenas lanterninhas.
 
Que a luz tênue do amor romântico sempre incida suavemente sobre nossos  olhos que se buscam no caos do mundo, nos escombros cinzas da realidade mesquinha.  Nos escombros de um mundo que ironiza tudo aquilo que não pode compreender.
 
Que sejamos sempre como João e Maria no nosso mundo de faz de conta. Que a nossa lei maior seja sempre esta: viver de amor.
 
Que o mundo desabe lá fora pois tudo ocorre aqui dentro, como diria Clarice Lispector sobre os que amam...que tudo sempre aconteça quando seus olhos famintos encontrarem os meus implorando por mais um pouco de amor.
 
Amor bom nunca é demais. Nunca é o bastante. Sempre há espaço na taça para mais um pouco deste vinho que embriaga a alma.
 
Sempre há espaço para mais um pouco desta alegria intolerável que rasga o peito em mil pedaços...despetalando-o num mundo de mil possibilidades.
 
Fecho os olhos. Não quero saber de mais nada. E você entende o quanto me custa não compreender tudo nos mínimos detalhes...você sabe o quanto me custa não entender cada vírgula desta loucura que faz tudo ganhar um sentido.
 
Fecho os olhos e estendo a minha mão a você. Que me leve para onde possa me perder de tudo que sei ...que me leve para onde possa me encontrar...aquela estranha que sou que me olha sorrindo maliciosamente através do espelho da minha alma.
 
Que possamos dançar sem escutar a música. Ou que escutemos aquilo que ninguém  mais pode escutar, falando de Nietzsche com nossas vozes embriagadas de tédio e louco desejo.
 
Que sejamos dois corpos nos perdendo na multidão do nada, na multidão do descaso...ou seria do acaso? E que sempre possamos desdenhar  daqueles que fizeram a lição de casa da sociedade enquanto andamos trôpegos por aí, meio loucos de filosofia e amor.
 
Me dê sempre um último beijo no rosto antes de me deixar partir...me lance sempre um olhar de quem sabe que haverá um próximo capítulo, uma nova citação.  Me desconstrua em mil letras, mil palavras, infinitos poemas...que voam pela imaginação...
 
 
 
 
 


 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 







quarta-feira, 13 de abril de 2016

Bote mais água no feijão e pegue mais uma cerveja na geladeira: quando a vida se torna sensorialmente simples

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Adoro fazer comparações entre comida e a vida. Entre comida e amor. Amizade. Alegria de viver. Aconchego. Preguiça gostosa.
 
Adoro relacionar um bom prato de macarrão com família, almoço de domingo, vinho tinto, laços que nunca se rompem, uma embriaguez leve na alma.
 
Adoro relacionar feijão, farofa , toucinho, tudo muito bem temperado e pouco light com o apetite com que podemos devorar a vida.
 
Adoro relacionar  um bom fast-food com momentos lentos e indolentes diante de uma tela de TV ou computador numa tarde fria.
 
Batata frita com ketchup tem gosto de happy hour, coleguismo beirando à amizade. Provolone à milanesa tem gosto de "hoje quero ser feliz". Pastelzinho de carne quentinho, faz lembrar de feira livre, despojamento, aqui agora , sem frescura , num impulso.
 
Uma carne chiando na grelha ao lado do pãozinho de alho faz pensar em molho à vinagrete. Faz pensar em cerveja gelada. Faz pensar em "Hoje é domingo!".
 
Pizza sempre tem uma cara de final de semana, de tô nem aí, estou com fome, acho que vou papear ou ver TV. Pizza nos faz um pouco crianças. Mais do que já somos.
 
Um risoto com champanhe sempre tem uma cara de romance...ai, meu Deus que frio no estômago!
 
Sim, adoro estabelecer relações entre comida e tudo o mais que existe.  Adoro relacionar sabores e personalidades. Sabores e sentimentos. Sabores e momentos. Adoro doces amargos, nuances picantes, um pouco mais de sal além da conta.
 
Sim, é bom quando a gente olha para alguém que a gente não esperava com a maior calma e diz simplesmente para nós mesmos que precisamos botar mais água no feijão e pegar mais uma cerveja na geladeira. É gostoso quando a gente se entrega ao sabor da simplicidade do improviso. Quando a gente não se perde em formalidades e todo mundo come ao redor da mesma mesa com boca boa, salpicando o feijão gordo com farinha e molho de pimenta. É gostoso quando a vida se torna afetiva e simples, mesmo que estejamos a saborear um prato de scargots com prosecco.
 
 


 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 








 

terça-feira, 12 de abril de 2016

Mais uma xícara de café numa manhã fantasiosa

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

É impressionante e quase constrangedora a percepção de como ficamos indolentes numa manhã aquecida pelo amor.

Sinto vontade de emendar uma xícara de café na outra como emendo e costuro cada um dos meus pensamentos que vão formando uma passadeira, um caminho de mesa com aqueles pontos abertos do crochê.

Em cada uma destas aberturas, me deixo cair cheia de uma preguiça gostosa e modorrenta, uma vontade de não sei o quê...uma vontade de ficar na mesma. Talvez , a felicidade seja isso mesmo: querer permanecer sem pressa. O futuro não existe. Futuro? Não, não sei disso não...respondo meio sorrindo , me balançando numa rede imaginária que me transporta para galáxias distantes.

Futuro? Não, não quero saber. Estou bem aqui, obrigada. Balança um pouco mais a minha rede por favor. Meu pé descalço quase encosta no chão...cheiro de café. Quero mais café. Quero principalmente o cheiro do café que invade as narinas e primitiviza  a minha existência.

Primitiviza? Existe tal palavra? E daí, se existe ou não? Guimarães Rosa foi perito em criar palavras...as criarei também com este sorriso matreiro e cheio de uma preguiça indecente...posso tudo o que quiser, mas não quero nada. Estou preenchida de tudo, transbordando como um seio gigante que jorra leite e afeto.

E continuo a me balançar em minha rede imaginária, mastigando meus pensamentos, bebendo deles, sentindo o cheiro do café que me enlaça nas mais caseiras e primitivas lembranças de uma possível felicidade.

 
 



 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 








 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Esta minha alma de barro

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Olho pela janela da alma. Das possibilidades. Vejo cores mil se dissolvendo à minha frente. Um perfume suave e picante invadindo e preenchendo as minhas lacunas, meus abismos...fazendo meus vazios transbordarem.
 
Olha para o meu maior e mais obscuro e escuso segredo com olhos embriagados, com olhos de quem já tudo viu, com olhos de quem tudo já sentiu e viveu...
 
E a mim resta simplesmente sorrir meio inconsequente e louca, meio desvairada e esvaída, meio nua e santa.
 
A mim resta brincar com as palavras que nada dizem, jogando-as para um canto e outro da boca como a parte finda de um doce muito amargo que se acopla a mim. Como o findar de um vinho envenenado que me enrubesce a alma. Que me faz caminhar e dançar meio sem rumo pela noite escura sem medo do amanhecer, fingindo de forma canastrona, me atirar de viadutos erguidos pelo status quo.
 
A mim resta lamber minhas feridas ainda abertas. Chorar e gargalhar de pena de mim mesma. De amor.
 
 
 

 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 








 

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Uma dose de fúria

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Deito na cama e sinto o calor modorrento grudar em minha pele como uma lembrança distante e persistente.

Olho para dentro de mim e percebo que às vezes é preciso virar o copo de uma só vez. Que é preciso virar o copo com fúria, engolindo sem pensar uma dose de algo que a gente não sabe bem o que é.

Viver é acordar no meio da noite, no escuro. É apalpar as paredes de uma casa desconhecida, em busca de um gole de água gelada que engane por alguns segundos uma insuportável sede que nos golpeia.

Viver é agarrar-se a qualquer coisa vaga para continuar sentindo o assoalho debaixo dos pés descalços. É tecer no ar versos de uma poesia que nunca chega ao final.

Sim, a vida é poesia de versos livres. É soneto com 13 ou 15 versos. É uma mulher linda arrastando uma perna com olhos cheios de uma paixão devastadora.

Viver é se rasgar pelos galhos secos da floresta. É atirar-se de abismos imaginários só para sentir o efeito que tal queda causa.

Viver é recriar as cores da mente em busca da pintura mais passional. 

Viver é acumular cicatrizes. É transformar-se numa caricatura de si mesmo. 

Sim, é preciso virar um copo com e de fúria. É preciso trazer os olhos da alma chispando, os lábios profanos. É preciso gritar e gemer até o colapso da lucidez estridente dos insanos, dos apaixonados e de todos os seres errantes que vagam por estas terras miseráveis.

É preciso criar na mente leitos de pétalas coloridas para suportar este barro que entra pelos poros da alma. Que sinto em minha boca. Que sinto em teu beijo constrangido.

É preciso recriar-se furiosamente. É preciso enfiar a adaga o mais fundo que se pode para ver o sangue escorrer puro e limpo.






Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 
























domingo, 3 de abril de 2016

Status quo, vai ver se eu tô na esquina dançando o ula ula

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Status quo, vai ver se eu tô na esquina dançando o ula ula e enxugando gelo. 

Ok.Ok.Ok. Algumas normas precisam existir, caso contrário quase todos nós ou todos já teríamos sido atropelados ao sair de casa em qualquer manhã ou tarde...se não houvesse normas, pouca gente sairia de casa de manhã.

Ok.Ok.Ok.  Algumas regras são necessárias e fazem muito bem, obrigada. Mas tem outras que francamente...nem para limpar a bunda servem. Algumas são indignas até para entrarem em contato com o nosso cocô. O mais fétido cocô se sentiria ofendido e magoado.

Não consigo mais levar a sério quem realmente acredita que a competência e a idoneidade de um profissional se faz por meio do cinza do terninho e da maquiagem nude, que em minha modesta e super pessoal opinião é uma merda. 

A mulherada passa produto em cima de produto,  perde meia hora de sono para passar um monte de meleca na cara e no final das contas ficam com jeito de quem acabou de sair do banho.  Podem me considerar perua, mas sou muito mais meu lápis preto trágico e meu batom vermelho estilo estou aqui me adorem ou eu deprimo.  Me "empiruo" em 5 minutos e pareço estar maquiada sem passar nada no rosto, sem perder preciosos minutos de descanso.

Se a pessoa gosta de roupa cinza e maquiagem nude é outro papo. Tudo bem. Gosto não se discute. O problema é achar que a maquiagem e a roupa definem a sua competência e idoneidade. É foda! 

Estou sem saco para gente que fica cagando regra o tempo todo , que consulta o grande manual da sociedade até para soltar um peido. A pessoa querer ler o manual, ainda vai. O problema é querer obrigar todo mundo a ler e a seguir como uma religião fanática.

Tem gente que faz o joguinho do status quo e até se diverte. Tem um lado cômico nesta dinâmica meio esquizofrênica. O triste mesmo é a pessoa acreditar no status quo como a um mantra que trará prosperidade e felicidade.  Como a uma corrente que trará algo de maravilhoso em sete dias. 

Sim, tô de saco cheio do status quo que fica enfiando o dedinho sujo nas melhores coisas da vida, nas únicas coisas que realmente fazem a nossa vida ter algum sentido. 






Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.