sábado, 5 de março de 2016

Sobre tudo aquilo que não aconteceu

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
Passeando pelo Facebook hoje, me deparei com um post que mexeu muito comigo. Algo aparentemente anacrônico em tempos de amores lights e organizados. 
 
Me deparei , na página da atriz Clarice Niskier,  com um vídeo que apresenta a versão original da canção francesa "Ne me quitte pas". Esta versão é cantada por seu autor, Jacques Brel, baseado em fatos da sua vida. Conheci esta música na voz de Maysa, que era tema de abertura da minissérie "Presença de Anita".  Para quem não sabe, Ne me quitte pas significa Não me deixe em francês.
 
Quando fazia teatro, durante um ensaio, enquanto ouvíamos canções francesas no auditório para entrar no clima da peça "O balcão" de Jean Genet, comentei jocosamente e com uma gota de desespero bem humorado no fundo da alma, que aceitaria de bom grado ser deixada mais uma vez apenas para ouvir "Ne me quitte pas" novamente, completamente destruída.
 
Não, não sou masoquista. Estava sozinha naquela época. É simples fazer licenças poéticas sobre o amor quando não se ama ninguém. Quando não se está realmente destruído.
 
Naquele tempo, quando estava prestes a me formar atriz e a iniciar o doutorado, achava que eu já havia passado pelas maiores alegrias e pelas piores tristezas da vida, que mais nada poderia verdadeiramente me atingir. Pensando naquela tarde de domingo, tudo que me resta a fazer é ouvir "Ne me quitte pas" mais uma vez com um sorriso de canto de boca e um filete invisível de sangue escorrendo pela alma.
 
Tem gente que nunca aprende. Tem gente que nunca desiste. Pertenço a esta patética categoria de pessoas que nasceram para serem pisadas. 
 
Dois anos e meio mais tarde , disse "Não me deixe" para alguém que foi capaz de dizer eu te amo para mim apenas quando imaginou que eu estivesse adormecida.  Eu pedi que não me deixasse com os olhos cheios de lágrimas, a voz estrangulada , em tom de prece, e meses mais tarde , tudo que pode fazer foi dizer eu te amo para alguém que ele imaginava não poder ouvir.
 
Sim, disse "Não me deixe" com outras palavras, outras vezes , para outras pessoas, sempre com sincero desespero.
 
Escuto "Ne me quitte pas" nesta manhã preguiçosa. Ela me faz companhia mais uma vez. Trago meu cigarro imaginário e sinto saudade de tudo que nunca aconteceu.
 
 
 
 
 
 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



2 comentários:

  1. Sabe, tuas palavras me dar um nó na garganta. E como se através delas pudéssemos tocar as marcas das tuas feridas. E dar pra sentir o quanto ela ainda tá exposta e ainda causa dor. E disso eu entendo. Quando eu assistir o filme, O Leitor pude sentir a minha. Uma cicatriz de um alguém que sumiu sem ao menos dizer adeus.E a gente tenta buscar respostas e verdades sobre o aquilo que aconteceu. E não é fácil, principalmente quando acontece num momento conturbado de qualquer adolescente, no ensino médio. Onde as dúvidas são maiores e as responsabilidades também. Quando temos que escolher qual a faculdade, qual curso e o que fazer da vida. Quando temos que aceitar as mudanças e aprendemos que as pessoas vão embora. Isso foi do final de 2009 e acho que só consegui digerir a situação com a música "Tempted", do Squeeze. Só que numa versão do Kid Abelha. No ano seguinte, no final de Novembro vou ao meu primeiro enterro. Quando eu perco meu melhor amigo. Justamente aquele que sabia tudo sobre mim. Me sentindo ainda sem chão, tiver que enfrentar o último ano escolar em 2011. Anos mais tarde eu reencontro a criatura. Como numa dessas brincadeiras de maus gosto da vida. Eu que por diversas vezes ensaie o que dizer e o que fazer (sim, a gente planeja algo quando se tem esperanças no amor) se acaso isso viesse a acontecer. Mas, naquele momento eu só pude ouvir a minha respiração, o meu coração num pulsar desesperado e aquela voz dizendo: "Oi, quanto tempo! ". Fiquei imóvel, sem reação e só um turbilhão de sentimentos vindo à tona e que dava um nó na minha garganta. Queria falado o quanto eu tinha sofrido todo aquele tempo. Sem respostas, sem contato algum e sem saber o porque. Mas, tudo o que pude dizer foi que estava bem. Que estava seguindo com a vida muito bem. Nos cumprimentamos como quem assinava um acordo de paz e seguimos cada um para o seu lado. Aí, em 2015 meu coração virou um Porto seguro para mais um Barquinho de pesca (Porque, que nasce pra ser trouxa morre sendo trouxa). E a trilha sonora dessa vez é "Surround Me With Your Love", do Porter. Quando eu me doei pra alguém que ainda sofria por outra. Enfim... a gente vai vivendo.

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    1. É, Darlin, não tem como viver intensamente e com sinceridade sem se esfolar inteiro. A vida é isso mesmo. Ou nos machucamos ou nos arrastamos pelo mundo como zumbis afetivos. As escolhas não são grande coisa RS mas é o que temos.

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